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Imagem não é tudo
CORRIDA ELEITORAL NOS EUA DESMENTE TESE DA ESPETACULARIZAÇÃO E REAFIRMA PLATAFORMAS POLÍTICAS
Apesar da conjuntura desfavorável, parcela ponderável dos americanos não se dispõe a eleger um "negro", como não elegeria uma mulher, para a Presidência
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BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Quem se interessa
pela política e pelas relações sociais
contemporâneas
sabe da importância das eleições nos EUA, no
mês de novembro.
Os candidatos e o teor da
campanha impuseram a necessidade de discutir temas como
o preconceito racial, o preconceito de gênero, o possível anacronismo do sistema eleitoral,
o grau de participação da cidadania, num quadro que suscita
dúvidas acerca de verdades
presumivelmente sabidas.
É neste último campo que
pretendo ficar. Tornou-se banal nos dias de hoje dizer que,
nos países democráticos, as
eleições se transformaram
num exemplo da sociedade de
espetáculo.
Os partidos pouco ou nada
representariam, importando,
sim, a imagem veiculada nas
campanhas, sobretudo quando
este ou aquele candidato se
destaca por seus dotes carismáticos.
Essa visão é em parte verdadeira, mas apenas em parte, e
as próximas eleições americanas são um exemplo eloqüente
da constatação.
Sem dúvida a força positiva
ou negativa das imagens tem
um papel importante na disputa, e não é por acaso que se fala
no carisma de Barack Obama,
na suposta arrogância de Hillary Clinton, no gestual nada
desenvolto de John McCain.
Porém, como é sabido, há
uma nítida distância programática, e de opções diante dos
fatos, entre os dois candidatos
nesta altura em confronto.
Discrepância
Exemplificando, Obama é
um persistente crítico da invasão do Iraque, disposto a ordenar a retirada das forças americanas num tempo contado em
meses.
McCain, participante da
Guerra do Vietnã e prisioneiro
dos vietnamitas, dispõe-se a
prosseguir na luta até a incerta
estabilização do Iraque.
Obama defende uma política
de maior incidência de impostos para os estratos mais ricos,
enquanto McCain considera
tais propostas demagógicas e
um desestímulo ao investimento. Obama sustenta a criação de
um plano de saúde universal
para a população americana,
herdando, aliás, as propostas de
Hillary Clinton.
McCain é infenso à proteção
social abrangente que, segundo
ele, representaria uma intervenção indesejada do Estado
na livre opção dos cidadãos.
É possível que, no poder,
Obama se visse obrigado a ser
menos incisivo no tema da retirada do Iraque, mesmo porque
a decisão de quando sair deveria ser calibrada, tanto quanto
possível, para não associar seu
governo ao travo amargo da
derrota. Não se pode excluir,
por outro lado, que McCain,
uma vez eleito, fosse mais flexível, em seus planos de luta por
prazo indefinido, porque o gasto público com a guerra é assombroso, sobretudo se nele se
incluírem os efeitos da alta do
petróleo.
É certo também que os EUA
não são uma autocracia, em que
os presidentes mandam e desmandam, estando sujeitos a limites constitucionais.
Mas, seja como for, essas ressalvas não alteram o fato de
que, nas eleições americanas
deste ano, os princípios e as opções políticas contam muito.
Outro ponto a ser destacado
diz respeito à discrepância entre fatores muito favoráveis à
oposição e as possibilidades de
vitória dos candidatos.
A conjuntura adversa ao candidato republicano é conhecida. Aí estão a instabilidade de
preços -com destaque para a
alta considerável do preço da
gasolina-, o desemprego em
ascensão, as bolhas financeiras
de várias cores, o dólar enfraquecido diante do euro e as intervenções militares no exterior -que estão longe de ser o
passeio vitorioso imaginado
por George W. Bush e seu círculo de estrategistas.
Sem dúvida, todos esses fatores, com a deterioração da economia à frente, são trunfos significativos na campanha da
oposição, como acentuamos
mais acima.
Porém, embora as tendências de intenção de voto favoráveis a Obama venham crescendo, a ponto de torná-lo favorito
ao menos a esta altura do processo eleitoral, como explicar
que nada seja certo e até recentemente McCain se encontrasse numa situação de empate
técnico, segundo as pesquisas?
Não há uma resposta única
para as interrogações. De uma
forma ou de outra, elas indicam
que o "estado geral da nação"
não é tudo nas escolhas eleitorais e que o bolso cheio ou vazio
dos cidadãos pesa muito, mas
nem sempre é, em si mesmo,
determinante.
Em síntese, assim como cabe
relativizar os dotes carismáticos, cabe também relativizar os
dados materiais, pelo menos
por duas razões.
Sensibilidades
A primeira consiste no fato
de que, apesar da conjuntura
desfavorável, uma parcela ponderável da população americana não se dispõe a eleger um
"negro", como não elegeria
uma mulher, para a Presidência dos EUA, demonstrando assim a força de preconceitos de
longa duração histórica.
A segunda razão diz respeito
ao terreno das sensibilidades, à
insegurança diante da ameaça
terrorista, no âmbito do território americano, potencializada com êxito pelo governo de
George W. Bush. A decorrência
desse sentimento, na percepção de muitos, vai no sentido de
ser conveniente deixar de lado
as incertezas do novo e apostar
num candidato tido como experiente, com um passado de
heroísmo militar, vinculado a
um partido visto, tradicionalmente, como superior aos democratas no campo da segurança nacional.
Diante de tanta diversidade e
de tantas questões, as eleições
americanas estão contribuindo
para desmentir não só algumas
"verdades sabidas" como, principalmente, os arautos da irrelevância da política.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
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