São Paulo, domingo, 13 de julho de 2008

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Imagem não é tudo

CORRIDA ELEITORAL NOS EUA DESMENTE TESE DA ESPETACULARIZAÇÃO E REAFIRMA PLATAFORMAS POLÍTICAS


Apesar da conjuntura desfavorável, parcela ponderável dos americanos não se dispõe a eleger um "negro", como não elegeria uma mulher, para a Presidência

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Quem se interessa pela política e pelas relações sociais contemporâneas sabe da importância das eleições nos EUA, no mês de novembro.
Os candidatos e o teor da campanha impuseram a necessidade de discutir temas como o preconceito racial, o preconceito de gênero, o possível anacronismo do sistema eleitoral, o grau de participação da cidadania, num quadro que suscita dúvidas acerca de verdades presumivelmente sabidas.
É neste último campo que pretendo ficar. Tornou-se banal nos dias de hoje dizer que, nos países democráticos, as eleições se transformaram num exemplo da sociedade de espetáculo.
Os partidos pouco ou nada representariam, importando, sim, a imagem veiculada nas campanhas, sobretudo quando este ou aquele candidato se destaca por seus dotes carismáticos.
Essa visão é em parte verdadeira, mas apenas em parte, e as próximas eleições americanas são um exemplo eloqüente da constatação.
Sem dúvida a força positiva ou negativa das imagens tem um papel importante na disputa, e não é por acaso que se fala no carisma de Barack Obama, na suposta arrogância de Hillary Clinton, no gestual nada desenvolto de John McCain. Porém, como é sabido, há uma nítida distância programática, e de opções diante dos fatos, entre os dois candidatos nesta altura em confronto.

Discrepância
Exemplificando, Obama é um persistente crítico da invasão do Iraque, disposto a ordenar a retirada das forças americanas num tempo contado em meses.
McCain, participante da Guerra do Vietnã e prisioneiro dos vietnamitas, dispõe-se a prosseguir na luta até a incerta estabilização do Iraque.
Obama defende uma política de maior incidência de impostos para os estratos mais ricos, enquanto McCain considera tais propostas demagógicas e um desestímulo ao investimento. Obama sustenta a criação de um plano de saúde universal para a população americana, herdando, aliás, as propostas de Hillary Clinton.
McCain é infenso à proteção social abrangente que, segundo ele, representaria uma intervenção indesejada do Estado na livre opção dos cidadãos.
É possível que, no poder, Obama se visse obrigado a ser menos incisivo no tema da retirada do Iraque, mesmo porque a decisão de quando sair deveria ser calibrada, tanto quanto possível, para não associar seu governo ao travo amargo da derrota. Não se pode excluir, por outro lado, que McCain, uma vez eleito, fosse mais flexível, em seus planos de luta por prazo indefinido, porque o gasto público com a guerra é assombroso, sobretudo se nele se incluírem os efeitos da alta do petróleo.
É certo também que os EUA não são uma autocracia, em que os presidentes mandam e desmandam, estando sujeitos a limites constitucionais.
Mas, seja como for, essas ressalvas não alteram o fato de que, nas eleições americanas deste ano, os princípios e as opções políticas contam muito.
Outro ponto a ser destacado diz respeito à discrepância entre fatores muito favoráveis à oposição e as possibilidades de vitória dos candidatos.
A conjuntura adversa ao candidato republicano é conhecida. Aí estão a instabilidade de preços -com destaque para a alta considerável do preço da gasolina-, o desemprego em ascensão, as bolhas financeiras de várias cores, o dólar enfraquecido diante do euro e as intervenções militares no exterior -que estão longe de ser o passeio vitorioso imaginado por George W. Bush e seu círculo de estrategistas.
Sem dúvida, todos esses fatores, com a deterioração da economia à frente, são trunfos significativos na campanha da oposição, como acentuamos mais acima.
Porém, embora as tendências de intenção de voto favoráveis a Obama venham crescendo, a ponto de torná-lo favorito ao menos a esta altura do processo eleitoral, como explicar que nada seja certo e até recentemente McCain se encontrasse numa situação de empate técnico, segundo as pesquisas?
Não há uma resposta única para as interrogações. De uma forma ou de outra, elas indicam que o "estado geral da nação" não é tudo nas escolhas eleitorais e que o bolso cheio ou vazio dos cidadãos pesa muito, mas nem sempre é, em si mesmo, determinante.
Em síntese, assim como cabe relativizar os dotes carismáticos, cabe também relativizar os dados materiais, pelo menos por duas razões.

Sensibilidades
A primeira consiste no fato de que, apesar da conjuntura desfavorável, uma parcela ponderável da população americana não se dispõe a eleger um "negro", como não elegeria uma mulher, para a Presidência dos EUA, demonstrando assim a força de preconceitos de longa duração histórica.
A segunda razão diz respeito ao terreno das sensibilidades, à insegurança diante da ameaça terrorista, no âmbito do território americano, potencializada com êxito pelo governo de George W. Bush. A decorrência desse sentimento, na percepção de muitos, vai no sentido de ser conveniente deixar de lado as incertezas do novo e apostar num candidato tido como experiente, com um passado de heroísmo militar, vinculado a um partido visto, tradicionalmente, como superior aos democratas no campo da segurança nacional.
Diante de tanta diversidade e de tantas questões, as eleições americanas estão contribuindo para desmentir não só algumas "verdades sabidas" como, principalmente, os arautos da irrelevância da política.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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