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Palavras ao vento
Ofício de traduzir influencia não só o sucesso da obra mas também a imagem de um país diante de ideologias locais
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Os problemas e perigos da tradução
já foram discutidos muitas vezes, e
não foi preciso esperar pelo encantador filme de
Sofia Coppola de 2003 para nos
darmos conta do que é "perdido na tradução" [Lost in Translation, lançado no Brasil como
"Encontros e Desencontros"].
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset [1883-1955] certa
vez descreveu o projeto da tradução como sendo "utópico", e,
na Alemanha, Johann Gottfried Herder já tratava do assunto no final do século 18.
Herder imaginou alguém
tentando traduzir a obra do
poeta francês setecentista
Prosper de Crébillon para a língua dos lapões, e esse experimento mental o levou a indagar se algumas idéias ou mesmo textos não seriam "unübersetzbar" -"intraduzíveis".
Neste artigo -traduzido de
minha versão inglesa original-
eu gostaria de examinar esses
problemas a partir de um ângulo particular: o das palavras intraduzíveis.
Muitas pessoas gostam de dizer que certas palavras de suas
línguas maternas são intraduzíveis. Os franceses às vezes
afirmam que "esprit" [espírito], "galanterie" [galanteria] e
até mesmo "politesse" [polidez] não têm equivalente reais
em outros idiomas.
Os ingleses não sabem ao
certo se estrangeiros compreendem o que eles querem
dizer quando falam num
"sportsman" [esportista, pessoa com espírito esportivo] ou
"gentleman" [gentil-homem,
cavalheiro]. No caso do alemão,
vêm à mente termos como
"geist", suspenso no espaço lingüístico em algum lugar entre
"espírito", "mente" e "cultura".
Em português, palavras como "saudade", "jeitinho", "malandro", "sacanagem" e "safadeza" criam problemas especiais para aqueles que gostariam de traduzi-las.
Saudade
Afirmações desse tipo não
devem ser aceitas incondicionalmente. Em russo e em turco,
assim como no português, um
dos termos dos quais mais comumente se alega que é intraduzível -"saudade", "toska" ou
"hüzun" (uma das palavras favoritas do escritor turco Orhan
Pamuk)- significa algo como
"nostalgia", "anseio" ou "melancolia".
Talvez seja mais exato dizer
que determinadas palavras são
especialmente difíceis traduzir
para outras línguas.
Mestiço
A palavra "mestiço", por
exemplo, não é fácil de traduzir
ao inglês, pois aparentes equivalentes como "half-breed" ou
"half-caste" soam pejorativos
-resíduos lingüísticos de preconceitos antigos. Mesmo assim, essas afirmações sobre intraduzibilidade têm, sim, algo
de importante a nos revelar sobre os valores das diferentes
culturas em que são feitas.
Foi por essa razão que a escritora russa expatriada Svetlana Boym pediu recentemente
um "Dicionário de Intraduzíveis", enquanto o narrador de
"Shame" [Vergonha, 1983], romance do anglo-indiano Salman Rushdie, que passou sua
vida na fronteira entre culturas
e línguas, observa que, "para
decifrar uma sociedade, observe suas palavras intraduzíveis".
Entre essas palavras, aprende o leitor, está "sharam", um
termo em urdu que, segundo
nos é dito, não é adequadamente traduzido por "vergonha".
Para serem compreendidas por
estrangeiros, palavras desse tipo requerem uma tradução não
apenas lingüística, mas também aquilo que hoje é conhecido como "tradução cultural".
O sociólogo húngaro Karl
Mannheim [1893-1947], que,
como Rushdie, viveu na fronteira entre culturas e línguas
-depois de refugiar-se na Grã-Bretanha na década de 1930 e
tornar-se professor na London
School of Economics-, queixou-se certa vez da "urgente
necessidade e grande dificuldade de traduzir uma cultura em
termos de outra".
Domesticação
Essa metáfora foi adotada
por antropólogos e outros acadêmicos interessados no estudo dos encontros culturais. Hoje, "tradução" exprime o que os
escritores oitocentistas queriam dizer quando escreviam
sobre "ocidentalizar" ou "anglicizar" ou Gilberto Freyre,
quando falava em "abrasileirar" ou "tropicalizar".
Poderíamos falar igualmente
bem em "domesticar", mas a
metáfora da tradução possui a
vantagem de nos lembrar da
importância da língua nos encontros e nos intercâmbios culturais. Tome-se o caso, bastante comum nos últimos dois séculos da história mundial, de
uma cultura em que alguns indivíduos que exercem liderança desejam seguir modelos estrangeiros.
Foi o caso, por exemplo, no
Japão após 1868, quando a restauração do poder do imperador, que durante muito tempo
fora mera figura representativa, estava vinculada ao desejo
da elite política de modernizar
o país, adotando modelos estrangeiros.
Uma parte da elite esperava
por uma monarquia constitucional ao estilo britânico, enquanto outras desejavam um
sistema mais autoritário.
Foi nessa época, em 1871, que
o ensaio do filósofo inglês John
Stuart Mill "Sobre a Liberdade"
(1859) foi traduzido ao japonês.
A tradução foi feita por Nakamura Keiu, um estudioso confuciano empregado pelo governo que se convertera ao cristianismo e era um intelectual japonês destacado da época.
Nakamura visitara a Inglaterra em 1866 e ficara impressionado pelo fato de que, em
suas palavras, uma nação pequena governada por uma mulher tinha sido capaz de derrotar o antes poderoso império
chinês. Ele endereçou um memorial ao imperador, "Sobre a
Imitação dos Ocidentais", e traduziu "Self-Help" (Auto-Ajuda), um manual para o sucesso
escrito por outro inglês vitoriano, Samuel Smiles.
As conseqüências que se seguiram à publicação da tradução de Nakamura ilustram com
clareza especial o problema do
que Roberto Schwarz, famosamente, já descreveu como
"idéias fora do lugar". Um dos
problemas mais sérios para o
tradutor do ensaio de Mills era
a ausência, no japonês, de um
termo equivalente ao inglês "liberty" (liberdade).
Algumas pessoas usavam a
palavra inglesa, pronunciando-a "riberuchi", ou optavam por
"freedom", que pronunciavam
"furidomi".
Mas o tradutor optou pelo
termo japonês tradicional "jiyu". A decisão de Nakamura teve a vantagem de fazer o conceito inglês parecer menos exótico, mais fácil de assimilar. Seu
livro popularizou-se rapidamente, vendendo milhares de
cópias.
Formação de elite
O preço da decisão tomada
por Nakamura Keiu foi que os
leitores de sua tradução provavelmente entenderam "jiyu"
em termos de suas associações
tradicionais negativas, por
exemplo com voluntariosidade
e também com egoísmo.
O resultado lingüístico do debate em torno da tradução da
palavra "liberty" pode ter afetado o resultado político do debate sobre a nova Constituição japonesa, algo que encorajou a
elite em sua opção coletiva por
uma forma de monarquia menos autoritária.
Uma moral dessa história é
que os tradutores carregam
uma responsabilidade pesada,
pois suas escolhas em termos
de palavras podem ter conseqüências sérias.
Mesmo assim, o ônus não cabe unicamente a eles. O estudo
dos intercâmbios culturais e da
tradução cultural sugere que,
quanto maior a distância entre
duas culturas e, especialmente,
entre seus valores fundamentais, mais difícil se torna a tarefa do tradutor.
Além de certo ponto, traduzir se converte em "Missão Impossível".
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Escreve
na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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