|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Livros
Alta estima
Reedição de "O Pai de Família", reunião de ensaios do crítico Roberto Schwarz sobre literatura, cinema e teatro, mantém complacência com o passado
KATHRIN ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA
O livro de Roberto
Schwarz é um documento -característico, agudo,
precioso- do seu
tempo.
Nove ensaios publicados em
revistas e jornais entre 1966 e
1976, mais dois inéditos, escritos provavelmente após 1977.
São análises de literatura, cinema, jornalismo político, teatro,
cultura. Três ensaios de crítica
literária emolduram um conjunto de reflexões que dizem
respeito não somente ao significado de textos e obras, mas
também a sua função e sua recepção naquele momento crítico do Brasil.
O primeiro ensaio, "Sobre "O
Amanuense Belmiro'", coloca o
conjunto no horizonte da
transformação do Brasil antigo
e rural em Estado moderno.
Dá o tom a era "da extinção
do "brilho rural'", patriarcal e
autoritário. Schwarz presencia
a fase de máxima aceleração
desse extinguir-se que traz,
com o milagre econômico, a rebarba de paradoxais dissonâncias: o progresso moderno e
vanguardista não deixa de produzir surpreendentes florações
de velhos males que vão da cordialidade ao autoritarismo, à
repressão da guerrilha armada
e à tortura.
Schwarz assume a tarefa nada fácil de orientar-se nos "Sertões" deslocados agora para os
conflitos intelectuais e ideológicos, políticos e sociais dos
grandes centros urbanos.
O ensaio "Sobre o Raciocínio
Político de Oliveiros S. Ferreira" é um exemplo da presença
de espírito analítico.
Nesse texto, escrito em 1964,
Schwarz torna transparente o
equívoco do uso oblíquo e eclético de referenciais heterogêneos ("as lições de Lênin,
Trótski e Gramsci" com o ideário do "livre choque dos interesses patronais e operários").
Se Oliveiros prega uma (ilusória) possibilidade de conciliação desses referenciais para
o maior bem do Brasil, Schwarz
rastreia suas incompatibilidades e denuncia a "dialética circular" que não supera nem
concilia, mas tão-somente perpetua uma confusão do entendimento que permite manter a
boa consciência e o status quo.
O estilo preciso e agudo da
intervenção pode tornar saudosos certos leitores, suscitando a nostalgia desse tipo de
análise lúcida e sua aplicação às
práticas híbridas e ao pensamento eclético de hoje.
A reedição de "O Pai de Família" tantas décadas após a
época crucial exigiria, aliás,
uma introdução ou um posfácio situando as diferenças, analogias e os desafios da intelectualidade do século 21.
Schwarz sabe, é claro, do papel devastador do tempo -na
(crítica da) literatura, como na
experiência social e política.
Passados cinco ou dez anos,
nem a história nem os autores
estarão necessariamente de
acordo com seus próprios escritos e produções. Schwarz
menciona esses efeitos de deslocamento errante em notas
que precedem dois ensaios.
Em menos de dez anos, as
previsões podem revelar-se erradas, mas, mesmo assim, o autor assume o risco dessa errância, pois "de uma perspectiva
dialética um descaminho publicado é melhor que nada".
O livro como um todo gravita
em torno dos intelectuais e artistas e mapeia, além dos conteúdos das obras, os lugares
que autores e obras ocupam na
sociabilidade.
Nessa perspectiva, é relevante a homenagem a Anatol Rosenfeld, cujo percurso permite
ver as mudanças de posturas
críticas e dos referenciais -que
passam dos "clássicos" para os
"engajados".
Na moldura literária (Cyro
dos Anjos, Kafka e Paulo Emílio Salles Gomes), é sedutora a
tradução comentada do conto
de Kafka que dá seu título ao livro -"O Pai de Família".
Schwarz vê na enigmática figura Odradek (fuso esfarrapado e sinistro, vivo-imortal, sem
finalidade e impossível de pegar) "o impossível da ordem
burguesa".
A análise apóia-se nas alegorias benjaminianas do drama
barroco alemão (referencial
talvez um tanto pesado e anacrônico).
Mas admite com certo tom
lacônico a possibilidade de
uma leitura metafísica.
E provavelmente admitiria
também que outros se deixariam convencer pelo próprio
Kafka do valor da brincadeira
gratuita. Schwarz até diz que
"há qualquer coisa desproporcionada e antipoética em invocar a todo momento a sociedade de classes para explicar a
graça de um livro" (pág. 128),
mas os tempos exigiam, ao que
parece, esse rigor militante.
Assim, o engajamento do crítico explica por que todas as
obras são invariavelmente filtradas pelo critério da "classe
social" -o termo retorna como
um refrão e abrange no uso de
Schwarz sentidos diversos (ora
econômicos, ora ideológicos,
ora partidários, ora culturais) e
equações cujo viés injurioso
(burguês = abastado = fascista =
cretino) é, em certos momentos, evidente.
No âmbito do engajamento
ideológico e artístico, é compreensível também a longa
análise das novelas "Três Mulheres de Três PPPês", de Paulo
Emílio Salles Gomes. A conturbada carreira desse crítico de
cinema representa de modo
exemplar os riscos da vida artística e intelectual no Brasil
entre os anos 1930 e 1970.
Mas, no ensaio de Schwarz, é
talvez contraproducente a
comparação do autor paulista
com Marcel Proust e desproporcional a pesada artilharia
analítica usada na análise dessas novelas, que brilham antes
de tudo pela irreverência com a
qual escancaram as hipócritas
e confusas indecências de pacatos burgueses....
Complacente com a época, a
reedição mantém a aura idealizada do passado: "Foram tempos de áurea irreverência", diz
Schwarz, tempos nos quais "o
país estava irreconhecivelmente inteligente".
KATHRIN ROSENFIELD é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de
"Desenveredando Rosa" (Topbooks).
O PAI DE FAMÍLIA
Autor: Roberto Schwarz
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 39,50 (176 págs.)
Texto Anterior: + Autores: Palavras ao vento Próximo Texto: + Lançamentos Índice
|