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Apagão na internet ocorrido em SP no dia 3 lança luz sobre os riscos da ciberdependência, diz especialista
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Uma pane no sistema da empresa
responsável por
68% das conexões
paulistas à internet
-provocando, no último dia 3,
prejuízos, longas esperas em
órgãos públicos e lamento entre usuários de todo o Estado-
pode ser um lembrete de que o
indivíduo está demasiadamente dependente da rede.
A Folha ouviu o psicólogo
Jean-Charles Nayebi, ex-pesquisador da Universidade de
Paris 13, para comentar o caso
a partir de sua especialidade: a
"ciberdependência" ou vício
em internet.
Segundo Nayebi, autor de
"La Cyberdépendance en 60
Questions" (A Ciberdependência em 60 Questões, ed. Retz),
pelo menos 8% dos mais de 1
bilhão de internautas sofrem
do transtorno.
Quanto à sociedade, ele diz
que não a considera doente,
mas compara a dependência
sistêmica da internet -que faz
com que serviços básicos deixem de funcionar sem ela- à
incapacidade, devido ao advento da calculadora, de fazer uma
simples conta de adição.
Leia abaixo trechos da entrevista, concedida por e-mail.
FOLHA - Podemos falar em "sociedades dependentes"?
JEAN-CHARLES NAYEBI - Sou contra
a generalização do termo "dependência", que tem um sentido psicopatológico para um
cientista como eu. Prefiro "sociedades do excesso", pois o
consumo abusivo ou excessivo
é certamente problemático,
mas diferente da dependência.
O futuro do homem na sociedade industrial parece, no entanto, ser um futuro dependente da tecnologia em particular.
FOLHA - Um Estado que quase pára
quando 68% das conexões à internet param de funcionar é um Estado
com problemas mentais?
NAYEBI - É uma questão de
ponto de vista. Se considerarmos que a alienação é um problema mental, deveremos responder afirmativamente.
Mas, se considerarmos que a
escolha por "tudo informatizado" é simplesmente a única via
de atingir a modernidade, a resposta será mais branda.
Tome-se como exemplo a
calculadora. A geração jovem
atual nos países que generalizaram o uso da calculadora na escola é certamente muito menos
forte em cálculo mental do que
a geração precedente.
Hoje, os contadores deixam
de trabalhar se há uma pane informática, a administração fica
paralisada se há uma perda de
conexão, mesmo que seja para
entregar um certificado banal!
A perda de uma capacidade corresponde mais a uma "deficiência" que a um "problema
mental".
FOLHA - Para evitar que a internet
"coma seus filhos", como o sr. diz, é
o caso de restringir a liberdade de
uso? Como resolver esse paradoxo?
NAYEBI - Não se pode fazer um
uso qualquer da liberdade. Ter
uma boa "higiene" no consumo
da internet não está absolutamente em contradição com sua
liberdade de uso.
FOLHA - Quantos ciberdependentes existem hoje no mundo?
NAYEBI - Em 2006, estimávamos o número de internautas
em 1,1 bilhão. As previsões para 2011 são de 1,5 bilhão de internautas. Os estudos ocidentais
mais concordantes estimam a quantidade de ciberdependentes em 8% dos internautas. Essas estimativas são amplamente revisadas pela alta na Ásia, onde as autoridades evocam cifras que podem atingir até 20%.
FOLHA - A internet criou mais
doenças do que outras inovações revolucionárias, como o rádio e a televisão? Por quê?
NAYEBI - Os casos de dependência da televisão ou do rádio
são excessivamente raros. Os
"teléfagos" são apenas consumidores excessivos, e não dependentes no sentido psicopatológico do termo.
Ouvir rádio ou assistir à TV
são atos passivos em que o papel do utilizador se resume a
escolher um canal.
As atividades no computador
e na rede são muito mais numerosas e demandam uma vigilância e uma interatividade
maior da parte do usuário. O
que eleva consideravelmente o
potencial vicioso da internet é a
interatividade.
FOLHA - O sr. classifica a ciberdependência em quatro tipos -ciberdependência de jogos, relacional,
sexual e ciberacumulação, o vício
por colecionar dados- e acrescenta
que os primeiros três são objetos de
consulta. Mas não seria o último o
mais freqüente?
NAYEBI - A ciberacumulação
transparece nas consultas de
todos os pacientes.
Os compradores patológicos,
os tecnófilos apaixonados
("geeks"), os cinéfilos renitentes, os musicófilos loucos pela
tecnologia (o "peer-to-peer")
passam seu tempo acumulando
objetos comprados na net, informações técnicas e tecnológicas sobre o último aparelho da
moda, centenas de filmes e músicas pirateadas em transmissões ilegais.
A indústria da estocagem de
dados tem bons dias pela frente. O mais estarrecedor é que o
ciberacumulador não encontra
tempo nem para ver metade do
que baixou!
FOLHA - Em suas manifestações
mais amenas e no contexto da "sociedade da informação", a ciberacumulação é um novo etos cultural?
NAYEBI - A mutação que nossa
sociedade está em via de viver,
graças às novas tecnologias da
comunicação, é imensamente
mais profunda do que parecemos mensurar no momento. A
"sociedade da informação", em
termos psicossociais, é a árvore
que esconde a floresta da "sociedade de consumo".
A angústia do homem moderno está em encontrar os
meios de consumir e possuir.
Pouco importa se o filme que
se baixa é a versão italiana de
um filme japonês que o francês
nada compreenderá. Baixamos
arquivos porque estão disponíveis e gratuitos, além de ser
agradável o fato de constituir
uma desobediência à lei que
proíbe o download ilegal.
FOLHA - Os celulares têm mensagens e acesso a internet e são utilizados por cada vez mais crianças. Já
representam uma ameaça de ciberdependência relacional?
NAYEBI - Eles aumentam o
acesso ao objeto de dependência. Hoje tratamos, na Espanha,
duas crianças com dependência grave de telefone celular.
Outros problemas como ansiedade e falta de concentração
são encontrados mais comumente em pessoas que fazem
uso excessivo do celular.
FOLHA - Uma das questões de "Ciberdependência em 60 Questões" é
sobre os tamagotchis (bichos de estimação virtuais). Preocupa que
mais pessoas tenham sociabilidade
com robôs, ao invés de humanos?
NAYEBI - Acho o caso dos tamagotchis bastante preocupante.
O ser humano é capaz de ter
afeição por uma máquina que
não corresponde. O investimento afetivo torna-se, portanto, pura perda. No caso de
crianças pequenas, pudemos
notar verdadeira escravidão
afetiva, com baixa de rendimento escolar e ansiedade.
Aconselho sempre aos pais recusarem quando a criança pedir um tamagotchi e proporem
um animal de verdade no lugar,
pois um cão ou um gato correspondem ao afeto da criança e
evitam que a criança seja uma
"devedora afetiva".
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