|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ música
Sucesso do tecno nas raves e pistas de dança obscurece o potencial criativo da música eletrônica experimental
O imprevisível ruído do assombro
Livio Tragtenberg
especial para a Folha
Já há algum tempo vivemos uma nova realidade na produção e criação
musicais. Em parte, um desdobramento das novas tecnologias mas
também resultado de uma nova demanda social que reposiciona parâmetros e
funções em relação à tradição do fazer
musical.
A partir de categorias herdadas do século 19, não é possível uma análise da cena atual, baseada em novas práticas e demandas socioestéticas. Assim, de um lado, é preciso abandonar o status quo da
chamada música culta como baliza na
abordagem da cena atual; e, de outro,
evitar o culto da facilidade como moeda
qualitativa da criação musical.
O modo de produção da música mudou, se industrializou, mas ao mesmo
tempo proporcionou uma nova "artesania" individual, à medida que ampliou o
acesso a equipamentos básicos graças a
seu barateamento. A figura tradicional
do compositor e do músico passa a dividir espaço com o músico-misturador,
que aprende com a prática nos equipamentos de edição e mixagem, longe dos
instrumentos acústicos e das regras acadêmicas. Enfim, um músico autodidata e
franco-atirador, descompromissado
com a tradição historicista da música européia ocidental.
Sendo sobretudo um coordenador de
sonoridades, sua idéia de composição é
basicamente edição (justaposição e sobreposição) de material sonoro preexistente e reprocessado.
A acusação de que não são "músicos"
porque não têm treinamento tradicional
involuntariamente lança luz sobre essa
característica importante desse novo
personagem. Um dos aspectos que irritam o meio musical estabelecido é o fato
de que essa nova criação acontece à margem do corpo da tradição musical e,
mais ainda, atua de forma agressiva, anti-histórica e libertária na devoração do
acervo dessa mesma tradição.
Essa espécie de componente punk
-um verdadeiro faça-você-mesmo musical- coloca de lado categorias, estruturas e políticas do establishment musical. Vive à margem do universo comercial das grandes gravadoras e dos grandes veículos de mídia.
Animadores de festas
Portanto as críticas do meio musical tradicional à atividade dos DJs e da chamada IDM ("Intelligent Dance Music", de resto, uma denominação boba) partem de um pressuposto viciado, atrelado ao fazer musical
acústico-eletrônico da música erudita
européia. Mas não há dúvida de que, na
maioria dos casos, esses personagens
"rodopiantes" não passam de profissionais animadores de festas. Em Portugal,
são chamados de gira-disquistas, numa
forma substantiva.
A valorização do poder psicofisiológico do som é de longe o que mais chama a
atenção nessas músicas; historicamente
a própria "Quinta Sinfonia" de Beethoven (1770-1827) foi recebida como um
"ruído assombroso" em seu tempo. Ela
retoma ainda uma certa idéia de coletivização na fruição da música. Espacialmente, sem um palco, sem um músico
com uma performance tradicional ao vivo e sem um ponto central de atenção sonoro-visual, as raves pulverizam o foco
de atração e, como num ritual coletivo de
anestesia (esvaziado de conteúdos religiosos ou políticos), o participante dança
livremente. Comportamento que busca
ser capitalizado pelo marketing de produtos para o mundo jovem.
Tem-se levantado, como contraponto,
o nome do compositor Karlheinz Stockhausen e sua geração da música eletrônica do pós-guerra para desqualificar a
cena "eletrônica" atual. Mas acontece
que as esferas de pesquisa, atuação e objetivos entre eles são essencialmente diferentes. Qualquer comparação é descabida. O que se deve destacar é que graças
ao trabalho dessa geração -e subsequentes- de compositores e engenheiros de som foi possível à indústria se
apropriar de (e desenvolver) meios e
equipamentos que hoje possibilitam tecnicamente a atuação dos gira-disquistas.
Noutras palavras, não faz sentido desqualificar a música eletrônica de pista e
ramificações com a régua e os rigores da
música eletrônica experimental européia
do pós-guerra. Essa postura esconde, no
fundo, uma vocação para o monoteísmo
estético -e ainda se baseia em obsoletas
dicotomias de culto-inculto, erudito-popular. Já no meio da música popular (o
que é isso, hoje? Alguém que me explique...), as restrições passam por uma crítica a uma "música feita por máquinas",
por não-músicos, fácil e repetitiva. Uma
vez mais, tenta-se vestir as velhas roupas
do "Imperador" para qualificar o outro,
o diferente.
Esse Fla-Flu não leva em conta -e desconhece- criadores, experimentadores
que à sua maneira e ao seu tempo se localizam reordenando os elementos sonoros segundo combinações nada ortodoxas, como Otomo Yoshihide, Geir Jenssen (e seu projeto Substrata: www.touch.demon.co.uk/substrata.html), Zbignew Karkowski,
Alfredo Triff, Silvia Ocougne, François
Kevorkian & Rob Rives, Bruce Gilbert,
entre outros tantos.
Todo um universo de criação musical
hoje trafega entre as tradições (populares, étnicas e experimentais) e os meios
eletrônicos e acústicos, realizando uma
síntese atual, momentânea, sobretudo
não-excludente. A veiculação desse tipo
de música também é transversa. Dá-se
em pequenos selos, pela internet, por festivais heterodoxos, misto de show, concerto, festa. Nosso meio musical dificulta
a veiculação desse tipo de música, uma
vez que os promotores ainda se apegam
às categorias de erudito, popular ou impopular -como escreveu o maestro Júlio Medaglia.
Essas músicas que incorporam, pilham, deformam e reformam as tradições musicais também operam a transformação dos formatos e estilos, além
das sonoridades. Por exemplo, a canção
ganha tratamentos combinados de voz
falada, cantada, sampleada, pessoal, impessoal, coletiva. As durações não seguem o padrão "tocar no rádio" de dois a
três minutos, são elásticas no tempo; os
textos combinam simultaneamente diferentes líricas: a do eu, do humor, do
amor, da reportagem. Padrões de instrumentação com baixo, ritmo constante,
harmonia e melodia redimensionam-se
num mosaico de sons reprocessados, de
origens as mais diversas. Nelas, melodia,
ritmo e harmonia são elementos possíveis, mas sempre imprevisíveis.
Na verdade, o que aparece dessa "música eletrônica" na mídia é o reflexo de
sua face mais comercial de uma forma de
fazer musical múltipla, que já é praticada
há mais de 15 anos na cena musical
transversal. Nesse meio os sons são tratados em tábula rasa, o que propicia uma
liberdade extrema de combinação de elementos abstratos com étnicos, culturas
populares e literárias num "melting pot"
instável, mas que reflete nosso momento
de saturação na oferta e circulação de informações.
Não se trata de defender essa nova música eletrônica contra ataques acadêmicos, mas de destacar que, junto a essa explosão da música eletrônica de pista,
existe um amplo universo de criadores,
que já não cabem mais no figurino do
erudito, experimental ou popular. Critica-se hoje a mediocridade da música
brasileira atual etc. Mas a responsabilidade por esse estado de coisas é das cabeças que se recusam a ampliar e incorporar novos elementos ao seu arroz-com-feijão sonoro. Todos nós, cúmplices da
preguiça e do comodismo -músicos,
críticos, promotores de cultura, público-, somos co-partícipes desse
"ground zero".
Livio Tragtenberg é compositor e autor de "Música de Cena" (ed. Perspectiva) e "Contraponto"
(Edusp). Em maio estreou peça com direção de J.
Kresnik, em Dresden, na Alemanha.
Texto Anterior: Et + cetera Próximo Texto: Queimando o futuro Índice
|