São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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"Lugar da América do Sul na Nova Ordem Mundial" avalia a inserção do subcontinente no quadro das relações internacionais

O sequestro da energia

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

O raciocínio da ciência econômica na contemporaneidade mundial se expressa quase sempre por meio do tropo linguístico da lítotes quanto à capacidade de a América Latina gerir seu próprio destino. Isso porque as análises giram em torno da órbita exclusiva da maracutaia monetária, câmbio, desregulamentação, abertura comercial etc., mesmo quando se declara a preocupação pelo social ou a filiação marxista -ou senão a descendência teórica cepalina vinda de Raul Prebisch e Celso Furtado.
Neste oportuno e excelente livro organizado por Marcos Costa Lima, que contém muitas informações sobre a inserção internacional da América Latina, não nos deparamos no entanto com nenhuma referência à natureza da região e ao seu entorno energético, como se o hemisfério Sul fosse um lugar desprovido de território físico: sem sol, sem água e sem vegetação.
Diante dessa lacuna que sequestra a natureza, as ciências sociais e econômicas, em seus diagnósticos acerca da América Latina, deveriam prestar mais atenção à energia e às matérias-primas da natureza.
Assim teríamos um procedimento abrangente e explicativo da globalização como a ideologia do neoliberalismo nos últimos decênios, a exemplo das privatizações internacionalizantes, a desterritorialização, a ancoragem financeira no dólar, o Estado gerencial, a desvalorização do trabalho, o "streap-tease tributário", o irracionalismo de falar em defesa dos interesses nacionais em sociedade desnacionalizada e desestatizada, o sentimento de impotência perante os agentes transnacionais, a arapuca de um livre comércio com dívida externa e a incompatibilidade entre o neoliberalismo e a democracia.
O que é chocante quanto à condição da humanidade latino-americana é o descenso vital que se observa entre os nossos intelectuais submetidos ao pensamento uníssono, todos mais ou menos concordes e resignados com a inevitabilidade objetiva do neoliberalismo. Este no fundo é desejado, não obstante a retórica humanitária em cima dos pobres e excluídos, o discurso caritativo e compensatório das migalhas: cesta básica, bolsa-escola, vale-refeição, cartão social etc.
No período pós-ditadura a despolitização da sociedade se traduz em eleições cada vez mais anódinas e suspeitas, assim como se espraia a sensação terrível de que nenhum projeto nacional é capaz de alterar a agenda vampira do FMI e do Banco Mundial. Esse pessimismo da vontade parece extrair algum prazer e contentamento diante do cenário externo depois da queda do Muro de Berlim, da desintegração da União Soviética, do ocaso dos modelos contestatários e da configuração internacional bipolar, da ruína do imaginário socialista, do adeus ao Estado-Nação substituído por blocos de interesses, além da parafernália de siglas tais como UE, Mercosul, Nafta, Apec e Alca.


Afinal, nos vangloriamos da condição cosmopolita e achamos jeca ressuscitar o presunto "nacionalismo" burramente confinado à década de 50


O que se observa nas últimas décadas, depois da abertura política sob a égide da ideologia globalitária, é que, antes de chegar ao poder, a chamada oposição confessa sua fidelidade programática à ordem mundial. O curioso é que a oposição, sobretudo aquela devota da "sociedade civil", que acredita na redução do poder do Estado como veículo da democracia, corre o sério risco de chegar ao poder e de não ter o que fazer com um Estado que se encontra endividado e esfacelado.
Os líderes e intelectuais latino-americanos responsáveis pelos partidos de oposição estão propensos a aceitar o caráter inexpugnável do neoliberalismo em função do colapso do socialismo lá na Europa Oriental. O triunfo do neoliberalismo é visto como uma espécie de fatalismo depois que cessou de existir alhures a antinomia entre socialismo e mercado.
Para os latino-americanos, isso significa o fim da história ou pelo menos da nossa história, pois estamos compelidos a seguir o curso hegemônico do mundo dizendo amém. Afinal, nos vangloriamos da condição cosmopolita e achamos jeca ressuscitar o presunto "nacionalismo" burramente confinado à década de 50.
Discutir o lugar da América Latina na economia mundial implica levantar a questão da dependência tecnológica, mas isso levaria os autores dessa coletânea a enfrentar o problema da importação dos pacotes tecnológicos externos, os quais nunca foram no entanto objeto de repulsa por parte dos teóricos da escola da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Ao contrário, foi a base do modelo da Cepal que persistiu até hoje e que permitiu a fácil instauração do neoliberalismo, o qual destruiu o parque produtivo de origem nacional.
O grande pecado da Cepal é o viés financeiro que exclui a energia, a matéria-prima e a tecnologia nacionais. Aplaudida pela esquerda e a direita, a Cepal é a Virgem Maria das teorias econômicas na América Latina. Intocável. Totem. Vítima jubilosa da alienação tecnológica, a Cepal promoveu a existência do colonialismo por dentro: o reinado absoluto das corporações transnacionais.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de, entre outros, "Biomassa - A Eterna Energia do Futuro" (ed. Senac).


Lugar da América do Sul na Nova Ordem Mundial
480 págs., R$ 45,00 Marcos Costa Lima (org.). Editora Cortez (r. Bartira, 317, CEP 05009-000, SP, tel. 0/xx/11/3864-0111)



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