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Em "A Epopéia Bandeirante", Antonio Celso Ferreira reconstitui a formação histórica da figura do paulista
O panteão do desbravador e do caipira
Milton Ohata
especial para a Folha
Numa das narrativas de "Três
Mulheres de Três PPPês", de
1977 (ed. Paz e Terra), vemos
um burguês madurão alimentar antigas veleidades literárias em plena
crise conjugal. Frustrado no casamento e
inspirado pelas comemorações da revolução de 1932, a personagem escreve um
"Louvor à Dama Paulista", pensando
nos sacrifícios das senhoras da época em
prol dos interesses do Estado contra o
centralismo de Getúlio Vargas. A situação tem o seu ridículo, mas um crítico
notou que Paulo Emílio Salles Gomes
(1916-1977) não queria com isto repisar
questões que o modernismo em arte há
muito liquidara. "Pelo contrário, ele as
invoca dentro mesmo da vigência indigente que na prática elas conservaram,
para expô-las ao vexame de uma reiteração aprimorada."
O livro de Antonio Celso Ferreira nos
leva ao próprio ambiente em que se formou a personagem satirizada por Paulo
Emílio. Ambiente já então embolorado,
mas feito de otimismo, mitificação do
passado e beletrismo chapa-branca,
num período que vai do auge do café aos
primeiros tempos da industrialização.
Neste intervalo, muitos paulistas se perguntaram o que era afinal "ser paulista",
um sintoma claro do incômodo diante
das levas crescentes de migrantes e imigrantes atraídos pela expansão econômica que mudavam rapidamente a composição demográfica da região. A resposta
tomou pé em duas figuras emblemáticas
que muitas vezes se fundiram numa só: a
do antigo bandeirante meio branco,
meio índio que, embarafustando com
heroísmo pelo sertão, foi aos poucos sedentarizando-se, até se fixar modestamente como o caipira dos quadros de Almeida Jr.
Fora de esquadro
O paulista dos tempos da colônia representava um tipo
fora de esquadro, que supostamente desenhou o futuro mapa do Brasil. No caipira, viu-se um reservatório de pureza
que a modernização tendia a aniquilar. O
progresso recente mudava a posição de
São Paulo no conjunto do país e as duas
figuras indicavam, com desajeitamento
de novo rico, tanto o ânimo de se fazer reconhecido quanto as dúvidas
diante de uma situação
nova.
Com alguma indecisão
expositiva, devida talvez
ao conjunto grande e variado de documentos que
utilizou, o autor do livro
faz um mapeamento das
variações do tema e principalmente da sua continuidade na literatura e na
historiografia regionais. A
persistência se deveu a
uma liga peculiar mas
convencional de um cânone literário passadista,
o da antiga epopéia, e a
uma forma "ancien régime" de vida cultural, a das
academias. O primeiro
inspirou "um modelo épico de enredamento da
história paulista" (pág.
24), aqui tomado no sentido que Hayden White
dá à narrativa histórica -esta é indiferente aos conteúdos narrados e chega
mesmo a determinar seu encadeamento
interno. A segunda vinha ao encontro do
desejo da elite política de tradicionalizar
com verniz literário suas posições recém-conquistadas. Tudo tende a formar
um pequeno sistema de autores, obras e
público, que começa na forma canhestra
do "Almanach Litterario de São Paulo",
publicado na província entre 1876 e 1885.
E continua nas sessões e escritos, cheios
de oratória bacharelesca, do Instituto
Histórico e Geográfico (fundado em
1894) e da Academia Paulista de Letras
(1909). Talvez o melhor do livro esteja no
reconhecimento de algo dessa dinâmica
na obra de alguns escritores modernistas
(notadamente Menotti
Del Picchia, Guilherme de
Almeida e Cassiano Ricardo), num terreno que
seria em tese avesso a ela.
As análises do livro buscam identificar o que há
de literário na história e
vice-versa. Nessa linha, o
autor mais sugere que
analisa, mas as sugestões são muitas e
certamente serão debatidas entre os especialistas de ambas as áreas. Um bom
ponto a discutir seria o desempenho do
modelo épico nas mais variadas formas
(discursos, poesia, ficção, historiografia
etc.), que uma análise mais detida poderia mostrar em seus efeitos involuntariamente cômicos, desencontrados, enigmáticos. É a qualidade literária dos escritos que não alcança o gênero? Ou o gênero antigo não passa de perfumaria?
Algumas ausências
Até onde sei, toda essa produção conserva mais o tom
elevado da epopéia que propriamente
suas formas, tom que pode ser identificado já na "Nobiliarquia" de Pedro Taques,
escrita no século 18, mas
só publicada no seguinte
-e não por paulistas.
Nessa linha, uma objeção
ao livro cobraria a ausência de Afonso Taunay
(1876-1958), o historiador
cuja obra mais se prestaria ao crivo analítico aqui
utilizado. Ainda assim,
como situar a prosa antienfática de Paulo
Prado e Alcântara Machado, também
eles membros do Instituto Histórico e da
Academia Paulista?
Outra limitação talvez decorra do recorte institucional adotado, impedindo
uma análise mais desataviada do diálogo
vivo entre as obras e entre seus autores.
Disso fica a sensação de relativa imobilidade dos temas, que ressurgem constantemente nos cercadinhos das instituições, mas parecem não se adensar nem
configurar um processo histórico-literário específico. O mesmo pode ser dito
quanto a alguns historiadores fundamentais para o argumento do livro, cuja
periodização vai até 1940, quando a pesquisa universitária tenderia a desbancar
o saber artesanal. Sabemos entretanto
que Afonso Taunay ocupou a primeira
cadeira de História do Brasil na USP,
sendo sucedido por Alfredo Ellis Jr., o
outro representante maior da antiga historiografia, até a década de 50.
História inacabada
Creio que o livro ganharia se a periodização chegasse
até 1954, ano do tão festejado quarto centenário de São Paulo. A data também
marca um ponto de inflexão na história
brasileira. Fundeada no Sudeste por Getúlio Vargas, que nesse mesmo ano se
suicidaria, a indústria nacional vinha de
ultrapassar a agricultura no conjunto do
PIB. O país entrava nos anos dourados
da bossa nova e, logo a seguir, na agitação política que levou ao golpe de 1964.
Nele e nos anos de chumbo que seguiram, o papel da burguesia paulista foi decisivo -e as consequências sentimos até
hoje. Francisco de Oliveira viu no processo o que chamou de "hegemonia inacabada", pela qual São Paulo dá as costas
ao país política e culturalmente, embora
continue à frente da economia. Em outras palavras, alinha-se com a nova fase
do capitalismo ao descartar justificações
ideológicas e opta por exercer uma hegemonia tão-somente através do mercado.
Os velhos tempos da epopéia bandeirante eram então uma página virada.
Milton Ohata é doutorando em história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor na Escola da Cidade.
A Epopéia
Bandeirante
372 págs., R$ 35,00
de Antonio Celso Ferreira. Editora Unesp (pça. da Sé, 108, CEP
01001-900, SP, tel. 0/ xx/11/3242-7171).
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