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+ brasil 504 d.C.
Pintura e crise
Corpo a corpo com a obra de arte é o maior trunfo de Argan na "História da Arte Italiana", mas
peso da ideologia limita sua percepção do novo
José Arthur Giannotti
História da Arte Italiana", de
Giulio Carlo Argan (1909-92), é
um monumento que a ed. Cosac & Naify fez traduzir e acabou de publicar com o máximo carinho.
Trata-se de uma obra oceânica e peninsular, que descreve o curso e as vicissitudes da arte italiana desde suas primeiras
manifestações até a presente crise. Mas o
que impressiona neste livro não é tanto
sua abrangência -que noutros casos seria sinal de irresponsabilidade e arrogância-, mas o entrelaçamento de uma
compreensão geral da história com a
análise rica e minuciosa de cada obra.
Obviamente, a essa visão panorâmica
correspondem marcos teóricos igualmente amplos, inspirados sobretudo na
fenomenologia, corrente filosófica que
influenciou sobremaneira o pensamento
europeu do século 20. Já que um método
se avalia por seus melhores resultados, os
escritos de Argan apresentam ocasião
excepcional para refletir sobre as vantagens e os limites da fenomenologia ao
tratar da história da arte e da experiência
estética. Aliás, ela mesma se preparou
para essa tarefa, moldando seus conceitos de modo a que se tornassem cada vez
mais adequados à descrição do belo.
Forma individualizada
Basta lembrar que Edmund Husserl, o filósofo
que inaugura esse movimento, começou
estudando conceitos aritméticos e lógicos para terminar se dedicando à análise
da gênese desses conceitos a partir das
experiências cotidianas. Se a experiência
é ela mesma travada por formas experimentais, a saber, a priori materiais, fica
aberto o caminho para pensar a obra de
arte como forma individualizada.
Nessa trilha Argan considera os objetos artísticos a partir do modo pelo qual
qualificam o mundo da vida e são qualificados por ele. Por isso a arte passa a ser
pensada como parte constitutiva da cidade, o mundo da vida por excelência do
homem ocidental; cada obra testemunhando um projeto que, distanciando-se
do trabalho do artesão, exprime o sistema de produção material e intelectual de
uma determinada época histórica. A
obra é coisa bela e expressão; no museu
um conjunto delas configura um momento da história da arte, mas nele igualmente se dá a primeira abstração e traição que essas obras sofrem ao perderem
seus lugares histórico-naturais.
Nos últimos tempos, entretanto, as cidades estão sendo substituídas por metrópoles, aglomerados onde as pessoas
se atomizam e se perdem na massa, deixando, por fim, de serem protagonistas
da história. Se a teoria da história, sempre atenta à diferenças, continua situando cada obra no seu contexto, não é por
isso, todavia, que deixa de perceber que
se altera o estatuto do próprio objeto artístico. Se este continua carregando um
valor espiritual intrínseco que o impulsiona para além de si mesmo, a partir do
momento em que passa a girar nos circuitos do mercado e da técnica tende a
ver seu valor expressivo cada da vez mais
submetido a seu valor de coisa.
Razão e capitalismo
No seu livro
"Arte e Cidade", Argan escreve: "Dá-se
encerrado o ciclo da civilização em que a
ação histórica constituía o modelo supremo do agir humano; anuncia-se o
princípio de um novo ciclo, no qual o
modelo será a técnica, como momento
pragmático da ciência. A história, enfim,
deveria transformar-se em ciência antropológica" (pág. 16).
E, logo em seguida, uma frase muito
significativa: "A noção global da fenomenologia da arte que a cultura moderna
possui de fato esvaziou e tornou vão o
conceito de arte, e a história da arte, como a história de "poéticas", tomou o lugar
da estética, já eliminada do rol das disciplinas filosóficas" (pág. 18).
O mundo contemporâneo entrou em
crise porque perdeu aquela integridade
totalizante que ligava o agir do ser humano à expressão desse ser na qualidade de
instaurador da arte. Este foge do passado
para se agarrar à contemporaneidade
fria, substitui a linguagem histórica por
uma linguagem cheia de fórmulas e tecnocientífica, assiste ao colapso daquela
liberdade do pensar e do agir humanos,
que, para lá da verificação objetiva e da
dependência lógica do efeito em relação
à causa, fundamentava a ordem moral
da interpretação, do juízo e da escolha.
Como sempre acontece com os fenomenólogos, a análise da crise do mundo
contemporâneo termina se expressando
como crise das ciências e da razão.
Percebe-se quanto Argan, fantástico
analista dos objetos artísticos criados na
tradição italiana, capaz de pensá-los inseridos nas cidades, uma das quais, Roma, ele até mesmo soube comandar como prefeito, continua se curvando a uma
visão romântica da história e do desenvolvimento da ciência ocidental. O esquema dessa visão é conhecido: já que a
massificação atomiza o ser humano e sua
razão, o Ocidente e a ciência entram em
crise e ficam à espera do "juízo" final, seja da razão recriando-se numa nova totalidade, seja da revolução inaugural.
Não há dúvida de que as relações humanas e suas obras postas em sistemas
parecem ter perdido aquele espaço de reflexão que as levavam ao pensamento de
si e, por isso, soçobraram nas águas metálicas das técnicas, do trabalho monótono e da razão alienada. Mas é isso que revela o estudo da evolução dos conceitos
científicos? Não são eles tanto fechamento de questões antigas como abertura para novos problemas? Além do mais, não
vejo por que se deve pôr em paralelo a
crise da razão e a crise do capital. Parece-me que a primeira simplesmente liberou
a teoria da psicose totalizante, abrindo
caminho para um pensamento que
abandona o projeto de encontrar a determinação completa das coisas e das ações;
a segunda, contudo, convive com uma
contradição, no seu plano insuperável,
entre a criação da riqueza e aumento da
miséria em todas as partes do globo.
Não vejo como é possível pensar a crise
do capital, desse modo de produzir riqueza social que se põe como fim em si
mesmo, nos termos de uma razão técnica que tem a liberdade de escolher meios
para a consecução de um fim dado. Não
é racionalização irracional a riqueza dever crescer simplesmente por crescer, a
despeito de se concentrar desmesuradamente e excluir dela a maioria dos seres
humanos, que, desempregados ou subempregados, deixam de exercer o direito de viver? A crítica fenomenológica do
capital se atém ao modelo fordista da divisão social do trabalho e não soube antever o funcionamento do capital numa
sociedade de informação.
O invisível no visível
Acresce ainda que a fenomenologia tem dificuldade
em pensar um todo que se dá como um
fim em si mesmo alienado, prestes a explodir em todas as direções. Isso porque,
na análise das relações humanas, precisa
distinguir, de um lado, o trabalho, o processo de escolha e efetivação de meios
para lograr um fim dado, de outro, o agir
como instauração de um campo de liberdade. Considera o ato de trabalho antes
de tudo ancorado no relacionamento do
ser humano com a natureza, menosprezando a relação homem a homem mediada por objetos-signos na qual ele se
insere necessariamente.
Não é o momento de reexaminar essa
questão, mas basta lembrar como o trabalho incide num aparelho moderno:
sendo este muito mais do que coisa, já
que só funciona ligado a diversos sistemas, como novo objeto de trabalho exige
que o ato seja muito mais escolha inteligente do que fria manipulação para chegar a um fim dado. Martelar é muito diferente do que operar um objeto técnico.
O primeiro ato isola o agente dos outros, mas o segundo, até mesmo o pressionar um botão, o liga a uma rede de sistemas entrelaçados. Por isso, nosso trabalho, aliás, como nosso mundo da vida,
tanto se move num terreno cinzento que
alimenta significados de nossas linguagens quanto se entrelaça à rede de sistemas gramaticalmente determinados. Se
o ato de trabalho somente ganha sentido
ao ser levado pela gramática do capital,
não é no plano dessa gramática que a crise há de ser pensada?
Argan não está imune à ideologia de
seu tempo. Não há dúvida de que toma o
valor estético sendo gerado no diálogo
entre a produção da obra e a avaliação
estética, de que sempre procura significados culturais, mas, em virtude de seu
pressuposto fenomenológico, esses significados são valores, desprovidos de
uma gramática à medida que dão apenas como modo de aparecer. Nunca um
modo de conduzir o olhar que se submete a regras elas mesmas criadas no ato de
apreciar e avaliar. A busca é sempre do
invisível no visível, muito diferente da
procura de certa necessidade entre as
partes de um quadro ou de uma série deles. No fundo, a noção de harmonia das
formas substitui a idéia de uma forma
muito específica de linguagem perpassando as obras.
Leia-se, por exemplo, o que diz de Morandi, no livro "Arte Moderna" [Companhia das Letras], que finaliza os três volumes agora publicados. Para ele, Morandi
é um caso clássico da impossibilidade de
ver um pintor a não ser de um ponto de
vista fenomenológico. O que, a meu ver,
perde essa descrição? Considerar, por
exemplo, o efeito da repetição da mesma
imagem que, de tanto aparecer mudando de aspecto, se converte num signo de
vínculos passados, presentes e futuros.
Jogo de linguagem
Não é assim que se configura como expressão do
mundo de Morandi? É como se uma linguagem emergisse da série de quadros e
um mundo particular esgueirasse por
ela. Ora, essa quase linguagem emergente, que alinhava as partes da obra numa
certa necessidade, não se abre para além
do conhecimento constituído, à medida
que ela, se, de um lado, fecha o sistema
desenhado pelo estilo, de outro, igualmente se abre para dizer o novo? Além
de coisa e valor, a obra de arte não é
igualmente exemplo de um jogo de linguagem, de processo de racionalizar, que
explode além de si mesmo?
Ao sublinhar o lado do conhecimento
inerente a toda obra de arte e menosprezar seu lado centrífugo, parece-me que
Argan, assim como outros autores ligados à fenomenologia, deixa de lado a fabricação da necessidade que uma série
de obras também empreende; necessidade que, por mais incrível que pareça, é o
primeiro salto na busca de novos sentidos. Aqui, creio eu, está o ponto nevrálgico de meu desconforto. Mas só do ponto de vista de sua teoria da arte, da prosa
que ele utiliza para explicar seu próprio
trabalho de historiador, pois, quando
passa para o corpo a corpo com as obras,
o resultado é fascinante.
No fundo, a noção de harmonia das formas substitui a idéia de uma forma muito específica
de linguagem perpassando as obras
Soluções distintas
Creio ser conveniente frisar essa diferença entre o que
ele diz de seu trabalho e o que nós mesmos aprendemos ao ler seus escritos,
pois só assim o sucesso desse aprendizado não esconde ou até mesmo não passaria a legitimar esse paralelismo entre a
crise da razão e a crise do capitalismo.
Não demanda, aliás, soluções diferentes.
A primeira, antes de tudo, ajuda a nos
librar da psicose da totalização, como se
o conhecimento só fosse legítimo quando total; a segunda, em contrapartida,
nos coloca o desafio de encontrar uma
forma de produção social que, a despeito
de se ancorar no mercado e no desenvolvimento tecnológico, seja capaz de se livrar desse processo louco do capital se
totalizar como fim em si mesmo, em vez
de satisfazer às necessidades humanas de
forma equitativa. Mas, se as tarefas são
diferentes, as artes não se situarão melhor neste mundo se, em vez de se pensarem exclusivamente como conhecimento do que é tarefa das ciências, também
se pensem como configuração do que está prestes a ser?
José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).
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