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"Dicionário Crítico Câmara Cascudo" reúne estudos de vários especialistas
sobre as obras do folclorista brasileiro, como "História da Alimentação no Brasil"
O sequestro acadêmico do estilo
Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha
Dicionário Crítico de Câmara
Cascudo", eis o título inapropriado do livro. A palavra "dicionário" deveria ser substituída por resenhas, no plural, vários autores
resenhando os 150 livros do grande folclorista brasileiro. O detalhe é que um dicionário sobre um dicionarista e filólogo
do porte de Cascudo exigiria um rigoroso procedimento de metalinguagem.
Ora, comentar simplesmente o conteúdo de cada livro dele é dar tiro n'água,
porque deixa de lado a questão essencial
da forma literária, isto é, o estilo. Afinal,
trata-se de um dos maiores prosadores
da língua portuguesa e que será lido lá
por 3500, quando todos nós estivermos
mortos e esquecidos.
Saibam todos que uma verdadeira crítica à viagem cascudiana é a coisa mais
difícil que existe no mundo, por causa de
seu jeito singularíssimo de escrever e pela ausência de método. "O escravo africano atravessou o Atlântico numa ponte de
canas-de-açúcar".
Eu fico mordido da vida com a ênfase
indevida em cima de sua biografia, tida
como conservadora porque ele gostava
da monarquia, foi católico, integralista,
publicou sob o auspício do Estado Novo
getuliano e não protestou quando veio o
golpe de 64. Acontece, porém, que esses
dados biográficos são absolutamente secundários, porque não interferem em
sua obra. É equivocada a idéia de que
atualmente esteja em curso uma "cascudolatria", depois de décadas de cascudofobia.
"Doutor em preto"
Também não
procede a restrição, aparentemente progressista, de que ele realça mais as "permanências" do que as mudanças da sociedade brasileira, sendo por isso pichado de intelectual "conservador".
Outro lugar-comum mistificador é a
afirmação de que Cascudo (1898-1986),
"doutor em preto", como ele dizia, não
retrata o escravo de carne e osso. O velho
Frobenius não o tira do pário no que
concerne ao conhecimento do "made in
Africa", sobretudo quando os negros
africanos se tornaram negros brasileiros
na bagaceira dos engenhos, onde se processou a "catequese negra". Foram os
negros brasileiros, e não os negros da
África, que inventaram o bumba-meu-boi e o maracatu. Nossa galinha de Moçambique não existe em Moçambique.
Lá é galinha do mato. Os negros bantos
nas bagaceiras trocaram Zâmbi por Xangô e Quianda por Iemanjá.
O problema de sua fortuna crítica é que
o filósofo do povo brasileiro provocou
ciumeiras intelectuais em Mário de Andrade, fato que determina até hoje as
coordenadas da discussão acerca da cultura popular no Brasil. Depois do ostracismo a que ficou relegada a obra de Luís
da Câmara Cascudo, surge agora a mistificação de que Mário de Andrade é quem
o colocou no caminho do estudo do folclore. Mentira. As academias universitárias produziram centenas de teses sobre
Mário de Andrade, enquanto Cascudo
ficou a ver navios. E o mais incrível é que
Cascudo foi professor universitário.
Mistificações
Dir-se-ia que isso se
deu por que Mário de Andrade era progressista e de esquerda? De forma alguma. Nisso concordo com a escritora Pagu, que o conheceu muito bem: Mário de
Andrade era fraco do ponto de vista político. O lance é o seguinte: Mário chegou
no folclore pela biblioteca, Cascudo foi
do folclore à biblioteca.
Em Cascudo, folclore é vivência e, depois, erudição. Daí a diferença estilística:
Cascudo escrevia melhor que Mário de
Andrade. Este se hospedou na casa de
Cascudo na metade dos anos 20.
Cascudo o levou para fechar o corpo
num catimbó, experiência que o inspirou a escrever "Macunaíma" em 1928,
mas Mário ficou boca-de-siri, ele se apaixonou lá em Natal por um catador de coco, escreveu "Na Pancada do Ganzá" e
deixou Cascudo na moita. Mário fazia
política literária.
Outra mistificação é não considerar
Cascudo um intérprete do Brasil, enchendo apenas a bola de Caio Prado Junior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda. Certamente o Rio Grande do
Norte não pegará em armas para revelar
ao Brasil que Cascudo amava como ninguém o povo brasileiro. E nesse amor é
que ele era revolucionário. O resto é conversa boi com abóbora.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed.
Casa Amarela) e "Biomassa" (ed. Senac).
Dicionário Crítico Câmara Cascudo
326 págs., R$ 45
Marcos Silva (org.). Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro
Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, São Paulo,
SP, tel. 0/xx/ 11/ 3885-8388).
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