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Passos seguros em meio ao caos
Em "O Desencantamento do Mundo", o sociólogo Antônio Flávio Pierucci destrincha as ocorrências desse conceito na obra do alemão Max Weber
Renato Lessa
especial para a Folha
Gabriel Cohn, no luminoso texto
de orelha do livro de Antônio
Flávio Pierucci, capturou definitivamente o mote: "O Desencantamento do Mundo - Todos os Passos do Conceito em Max Weber" encerra
um grande e adorável paradoxo: trata-se
de um livro encantador sobre a idéia weberiana de desencantamento. Impossível evitar a sensação, inevitável a remissão à sempre fina leitura de Gabriel
Cohn. O encanto do livro, tal como os
demônios, é legionário. A começar pela
linguagem, rara combinação entre rigor,
humor e leveza.
A seguir, a estrutura, na qual cada passo é anunciado e cumprido, na qual nada
se esconde ao leitor. Por fim, ao término
de exaustiva busca na obra de Weber
[1864-1920] para elucidar o enigma do
desencantamento, a descoberta do encantamento como potência. Enfim, um
exercício exemplar do etos cognitivo básico de Max Weber: diante de um mundo caótico e inefável, tratemos de buscar
nitidez, sem interdição à possibilidade
da surpresa. Mas, como faria o autor, vamos por partes -ou passos.
A proposta de Pierucci é, já na partida,
clara. Trata-se de "percorrer de ponta a
ponta a escrita weberiana, fazendo através de toda a sua extensão um rastreamento completo, exaustivo, dos usos do
termo desencantamento e de seus derivados e flexões" (pág. 23). A justificativa
do empreendimento é incontroversa.
A imagem (conceito? metáfora?) do
desencantamento do mundo, ainda que
com incidência menor na obra de Weber
do que outros ícones weberianos, tais como racionalização e seus derivados, tem
presença significativa e estratégica. Pela
própria natureza da expressão e pelas associações que mobiliza, ela deflagra
"efeitos de sentido que ultrapassam largamente seus pontos de aplicação autorais" (pág. 28). Ainda nos termos do autor, trata-se de "um significante de fraseado lírico, hipersuscetível de manipulação metafórica" (pág. 32).
A idéia do livro é a de limitar o alcance
da "volatilização semântica e do disparate, da tolice" (pág. 35), na interpretação
do conceito de desencantamento do
mundo, refutando sua definição como
algo "hiperpolissêmico" e contraditório.
Desfazer confusões
Uma bela proposição de Gabriel Cohn, citada em epígrafe ao capítulo 2, serve de referência ao
empreendimento: "Claro que um conceito não pode ser tão proteiforme; algum núcleo duro de significados ele certamente terá". Em outros termos, caros
aos adeptos da teoria do caos, trata-se de
encontrar os atratores, que são recursos
para examinar a ordem subjacente a sistemas caóticos e não lineares.
O procedimento adotado por Pierucci
faz de seu livro uma obra ímpar na fortuna crítica weberiana. Para sustentar seu
ponto de que os efeitos de sentido do
conceito, na letra weberiana, não são
aleatórios ou polissêmicos, o autor percorre a obra completa de Weber e localiza as 17 ocorrências do conceito, por ele
designadas como passos (capítulo 3).
No trajeto, várias confusões são desfeitas, desde a mais singela -a de que desencantamento possui relação de sentido com desencanto com o mundo ou
com traços de "Kulturpessimismus"- à
mais desafiadora -a de que a flutuação
de sentido no texto de Weber corresponde a estágios do pensamento do autor do
conceito.
Pierucci percorre todos os passos e,
além de reproduzi-los para o leitor,
amarra os seus significados básicos, os
seus atratores. Para ele, as diferentes utilizações por parte de Weber do conceito
estão associadas a dois núcleos básicos
de significado: desencantamento como
perda de sentido e desencantamento como desmagificação, sem eliminar a possibilidade de que em alguns casos os dois
significados cooperem entre si.
Os passos seguintes ocupam a maior
parte do texto: do capítulo 6º ao 13 e por
mais de 150 páginas, cada passo anunciado é comentado em profundidade, justificando a ancoragem semântica -ou a
proposição de uma "polissemia restrita"
(pág. 216)- apresentada anteriormente,
em torno dos dois significados básicos
mencionados.
A utilidade e a qualidade da obra em
questão são inquestionáveis. É fundamental, diante de conceitos com largo
espectro potencial, controlar os riscos da
superinterpretação. Minha dúvida
-uma dúvida um tanto "abusada"
diante do controle impressionante que
Pierucci possui da letra de Weber- diz
respeito à possibilidade de outras âncoras semânticas, passíveis de ser imaginadas sem que a estratégia antipolissêmica
seja agredida.
Em particular, em um dos passos considerados em passagem de "A Ciência
como Vocação", Weber associa o desencantamento ao fato de que em nosso
tempo "os valores mais últimos e mais
sublimes" teriam "recuado da esfera pública para o reino transcendente da vida
mística ou então para a fraternidade das
relações diretas dos indivíduos uns com
os outros". Na chave de Pierucci, desencantamento, aqui, significaria "perda de
sentido", o que me parece correto, mas
parcial, já que a passagem indica claramente um "deslocamento de sentido".
Novos sentidos
Correndo o risco de
incorrer no pecado da polissemia irrestrita, creio ser possível associar o deslocamento de sentido à idéia da produção
de novos sentidos. O caráter negativo da
idéia de perda de sentido seria ultrapassado por um atrator de corte positivo,
que nos permitiria indagar: que potências no mundo produzem e introduzem
novos sentidos?
Esse desvio interpretativo não reduziu
meu encanto pelo livro. Confesso mesmo que gostaria de ter adotado a elegante restrição semântica do padrão "17 passos, 2 atratores", desafiada pela possibilidade de um terceiro. Mas, para minha
alegria, fiquei plenamente reconciliado
com o livro, graças a seu autor.
Ao fim do texto, uma bela surpresa
aguarda o leitor. O tema do encantamento emerge como dobra necessária do desencantamento. Pierucci teve a coragem
intelectual de exibir a idéia e indicar sua
potência. Creio que, se voltássemos aos
17 passos com essa descoberta, outros
núcleos de sentido poderiam ser revelados. Mas é da natureza do encanto deste
livro que sigamos fascinados e à espera
desse desdobramento.
O livro de Pierucci é uma lição de interpretação. Freud, em "Moisés e o Monoteísmo", nos advertiu de que "a deformação de um texto se assemelha, de um
certo ponto de vista, a um assassinato" e
que "a dificuldade não está na perpetração do crime, mas na dissimulação dos
seus vestígios".
Aqui, por certo, não há crime, mas
tampouco dissimulação dos vestígios: as
marcas autorais estão por toda parte e, os
passos percorridos, enunciados com a
maior clareza possível.
Renato Lessa é cientista político e professor titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro (Iuperj). É autor de, entre outros livros,
"Agonia, Aposta e Ceticismo - Ensaios de Filosofia
Política (ed. UFMG).
O Desencantamento do Mundo
240 págs., R$ 29
de Antônio Flávio Pierucci. Ed. 34 (r. Hungria, 592,
CEP 01455-000, SP, tel. 0/ xx/11/3816-6777).
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