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+ sociedade
Por Timothy Garton Ash
Historiador
aponta a proibição do uso do véu em escolas como uma das razões de um atentado fictício na capital francesa em 2009
A bomba que abalou Paris
Finalmente temos a investigação de
que precisávamos: um inquérito
completo e independente sobre o
atentado em Paris em 2009. Como
todos sabemos, naquele terrível ataque
uma grande área entre o bulevar Montparnasse e o rio Sena foi devastada por
uma pequena bomba nuclear, detonada
por suicidas ligados ao Grupo Islâmico
Armado (GIA), com base na Argélia.
Cerca de 100 mil pessoas foram mortas
ou feridas. O coração cultural de uma das
mais belas cidades do mundo foi reduzido a ruínas fumegantes. Ninguém jamais
esquecerá a foto da estátua de Balzac feita por Rodin pairando num sofrimento
torturante sobre os cadáveres desmembrados, mas ainda reconhecíveis, de um
jovem casal no bulevar Raspail.
O inquérito da Comissão Annan deve
ser rigoroso, imparcial e internacional.
Deve ter a total cooperação de todos os
serviços de inteligência envolvidos, especialmente porque o fracasso destes em
cooperar parece ter sido o motivo pelo
qual não se evitou o ataque. A presidente
Hillary Clinton, dos Estados Unidos, e o
presidente Nicolas Sarkozy, da França,
estavam certos ao dizer, em sua declaração conjunta, que a história não nos perdoará se deixarmos qualquer pedra sem
ser revirada. É claro que devemos esperar os resultados da Comissão Annan,
mas está na hora de sugerir alguns lugares onde ela deveria procurar.
O ex-secretário-geral da ONU e seus
colegas não deveriam se limitar aos fatos
recentes. Examinando mais minuciosamente, certamente descobriremos que
as raízes da catástrofe de 2009 podem ser
encontradas nos erros cometidos entre
2002 e 2004. Para começar, já parece claro que as irmãs Belhadj, que detonaram
a bomba no Jardin du Luxembourg, se
tornaram radicais ao serem expulsas da
escola por usar sobre a cabeça o véu muçulmano, de acordo com a lei aprovada
pelo governo Chirac em 2004. Havia certamente bons motivos, assim como dúbios, para a proibição do véu.
Os motivos dúbios tinham a ver com o
oportunismo político tão característico
do presidente Chirac, que acertadamente calculou que, introduzindo essa lei,
poderia captar votos tanto da esquerda
secular quanto da direita antiislâmica.
Os bons motivos tinham a ver com a
emancipação feminina, desejada por
muitas das próprias muçulmanas, e com
a tentativa dos professores de defender o
espírito de livre investigação e instrução,
que sofria ataques acirrados de grupos
de pressão islâmicos na França.
No entanto, com o benefício da visão
retrospectiva, a proibição do véu pode
ser considerada um erro predestinado. A
expulsão das portadoras de véu das escolas provocou grandes manifestações. Em
uma mensagem previamente gravada
que enviaram à mídia, as irmãs Belhadj
compararam seu ato ao de Wafa Idris, a
primeira mulher-bomba suicida palestina. Isso era objetivamente absurdo. A
posição dos muçulmanos na sociedade
francesa não era de modo algum comparável à dos palestinos antes da divisão
entre Israel e Palestina -finalmente imposta pelo governo Clinton (H.), dois
meses antes do bombardeio de Paris.
Mas as irmãs foram levadas a acreditar
nisso durante intensas sessões de doutrinamento em apartamentos da chamada
"Cidade dos 4.000" -um conjunto habitacional miserável no subúrbio parisiense de La Courneuve, cujo índice de
desemprego era de cerca de 30%.
Nessas reuniões de lavagem cerebral,
elas ouviram repetidamente que os "judeus ateus" do Quartier Latin eram responsáveis por sua miséria. No entanto a
tragédia de 17 de agosto de 2009 não pode ser simplesmente atribuída à elite política francesa e seu fracasso em enfrentar de maneira adequada um problema
extraordinariamente difícil, que desafiava todas as sociedades da Europa.
A outra metade da história tem a ver
com erros dos serviços de informação e o
uso político dessas informações. A prática do terror já era conhecida do grupo da
"Cidade dos 4.000" por suas conexões na
Argélia; mas a chave de seu "sucesso" foi
conseguir uma arma de destruição em
massa pequena e portátil. A Comissão
Annan vai investigar exatamente como
eles fizeram isso.
Mas parece, pelas reportagens na imprensa, que peças altamente relevantes
do quebra-cabeça da inteligência já estavam nas mãos de três agências: um grupo especial liderado pelo Pentágono que
acompanhava a proliferação de armas de
destruição em massa; o MI6, da Grã-Bretanha; e o serviço de inteligência internacional da própria França. O problema
decorre do fato de eles não terem juntado as peças e de políticos não terem agido com base no que lhes informaram.
Por quê?
Mais uma vez devemos remontar aos
anos de 2002 a 2004 para encontrar as
respostas. Os órgãos de inteligência britânicos e americanos sempre desconfiaram de seus colegas franceses -"eles vazam como uma peneira", disse um conhecido espião inglês-, mas a desconfiança foi exacerbada pelas polêmicas sobre o Iraque. Segundo uma nota que vazou de uma reunião internacional, o chefe neoconservador do Gabinete de Planos Especiais do Pentágono teria comentado que o Pentágono só compartilharia
informações com "aqueles macacos entreguistas comedores de queijo" se fosse
por cima de seu cadáver. Os britânicos e
os americanos ainda trabalhavam em ligação muito estreita, mas a credibilidade
da inteligência britânica fora prejudicada pelo que se considerou a divulgação
de afirmações inconfiáveis sobre as armas de Saddam Hussein.
A Casa Branca não havia esquecido a
experiência danosa de 2003, quando o
presidente Bush afirmou redondamente
em seu discurso sobre o Estado da União
que "o governo britânico soube que Saddam Hussein recentemente tentou obter
quantidades significativas de urânio na
África". Fontes americanas mais tarde
concluíram que essa informação de alto
nível se baseou em documentos forjados.
Em conseqüência, embora o MI6 realmente tivesse obtido no início de 2009
uma pista crucial sobre a preparação de
um dispositivo nuclear por um grupo do
Oriente Médio, que, como se soube depois, trabalhava com a célula islâmica de
La Courneuve, a informação não foi levada a sério em Washington nem compartilhada com Paris. Mas a culpa era
apenas em parte dos serviços de inteligência. Como a recém-eleita primeira-ministra britânica, Sally Jones, admitiu
com ressalvas numa entrevista à BBC em
setembro de 2009, os principais governos ocidentais haviam sido prejudicados
pelos relatórios do inquérito Butler na
Grã-Bretanha e da Comissão Silberman
em Washington.
Como sabemos, suas conclusões, embora revestidas de cautelosos termos diplomáticos, levaram a maioria das pessoas a concluir que o presidente Bush e o
primeiro-ministro Tony Blair haviam
feito montanhas dos montículos de terra
levantados pela inteligência sobre o suposto programa de armas de destruição
em massa de Saddam Hussein, tal como
existia -ou não- nas vésperas da guerra do Iraque, em 2003.
A apresentação, pelo secretário de Estado Colin Powell ao Conselho de Segurança da ONU, de amplas evidências da
inteligência, incluindo fotos aéreas, se
tornou sinônimo do que todo líder político queria evitar. "Não farei um Powell",
eles diziam a seus oficiais. Em conseqüência, em vez de valorizar as evidências da inteligência, como haviam feito
em 2003, os líderes políticos de todas as
capitais ocidentais tendiam a lhes dar
desconto.
Assim, em meio ao constante fluxo de
relatórios alarmantes, mas não-confiáveis, que chegavam por todos os canais
de inteligência, a advertência que poderia ter salvo a vida de mais de 60 mil pessoas e poupado outras 40 mil de ferimentos não foi levada a sério. De maneira
bastante previsível, a figura familiar do
encalvecido sir Tony Blair, o ex-primeiro-ministro, se levantou de seu lugar habitual, ao lado do primeiro corredor da
Câmara dos Comuns, para dizer: "Eu
não disse?". Bem, é o que se esperava dele, não? A tarefa da comissão agora é determinar, rigorosa e imparcialmente, até
onde ele estava certo.
Timothy Garton Ash é historiador inglês e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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