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Peter Burke
Uma história cultural dos odores
É possível escrever uma história dos
odores? Que certos lugares e períodos são marcados por diferentes "panoramas de odores" é algo
que muitos de nós, ao menos os que têm
mais de 50 anos, sabem por experiência
própria. Cada cidade ou cada agrupamento regional de cidades possui odores
característicos: em Araraquara, por
exemplo, sobressai o cheiro de laranja, e
na São Paulo dos anos de 1980, quando
havia mais carros movidos a álcool do
que hoje, era possível sentir, já no aeroporto, um cheiro doce inconfundível -a
ponto de eu não ter a menor dúvida de
que, mesmo se chegasse de olhos vendados, saberia em que cidade me encontrava. No caso do Reino Unido, ainda lembro vivamente de um odor da minha infância, o cheiro azedo que impregnava as
ruas dos bairros pobres por onde eu passava a caminho da escola. Marcel Proust,
como não poderia deixar de ser, dava
muita atenção aos odores assim como ao
sabor de sua célebre madeleine, e, há alguns anos, caminhando por Hong Kong,
tive o que se poderia chamar de experiência proustiana.
Campanha de purificação
Ao passar por uma mercearia, retornei 40
anos e me vi subitamente de volta ao período em que vivi em Cingapura. Naquela época, bem antes de o governo cingapurense dar início a sua campanha de
purificação, determinadas ruas possuíam um peculiar odor agridoce, o qual
devia ter muito a ver com a culinária do
Sul da China, embora eu nunca tenha sido capaz de analisá-lo e decompô-lo em
seus elementos constituintes.
Analisar odores dessa maneira requer
destreza ou, talvez, um dom. No "Conto
de Genji", narrativa romanesca japonesa
do século 11, um dos passatempos dos
cortesãos e cortesãs é justamente adivinhar os ingredientes de coquetéis de perfume. E o herói do romance "O Perfume", de Patrick Süsskind, distingue-se
pelo condão de mesclar odores para criar
novos perfumes, assim como pela habilidade em analisar os componentes de
perfumes já existentes.
No entanto, talvez por eu ser historiador, a lembrança mais nítida que guardo
do romance não são as aventuras desse
sujeito talentoso, mas sim a evocação dos
odores típicos da Paris setecentista. E isso me leva a indagar, retomando a questão colocada no início deste artigo, se seria possível aos pesquisadores, baseando-se em documentos, escrever uma história semelhante à que Süsskind compôs
a partir de sua imaginação.
Ora, o caso é que isso já foi tentado por
alguns. Nessa área, como em outras, o
pioneiro foi Gilberto Freyre. Em "Sobrados e Mucambos", por exemplo, Freyre
aventura-se no que ele chamou de história sensual, uma história com lugar para
os odores, assim como para o sabor dos
"doces de Pernambuco" e para o som
("ruge-ruge") das saias compridas nas
escadas da casa-grande. Freyre descobriu um lugar em sua história para o fato
de que, no sobrado tradicional, "os quartos de dormir impregnavam-se de um
cheiro composto de sexo, de urina, de pé,
de sovaco, de barata, de mofo".
Novas práticas de higiene
Todavia, aqui como alhures, os insights de
Freyre foram demasiado numerosos para que ele tivesse tempo de desenvolvê-los ou investigá-los sistematicamente.
De fato, tanto quanto sei, foi somente no
início da década de 1980, poucos anos
antes da publicação do romance de Süsskind, que um historiador profissional
publicou um livro sobre o tema do odor.
Trata-se de "Saberes e Odores" (1982)
[editado no Brasil pela Companhia das
Letras], do pesquisador francês Alain
Corbin, que depois disso ainda escreveu
um livro sobre os sinos e o "panorama de
sons" na França oitocentista.
Corbin devota seu estudo à percepção
dos odores e à ascensão de novas práticas de higiene na França do século 19, como, por exemplo, o hábito de se lavar
com mais freqüência e limpar mais partes do corpo do que se costumava fazer
em séculos anteriores (quando as classes
privilegiadas valorizavam mais o asseio
dos lençóis e toalhas de mesa do que o da
própria pele). O argumento central do livro é o de que essas novas práticas foram
uma resposta à redução no nível de tolerância ao que então se entendia por cheiros ruins. Em outras palavras, o que Corbin faz -e o que a documentação disponível lhe permite fazer- é uma história
da percepção dos odores, da sensibilidade aos odores, mais do que uma história
dos odores propriamente dita. Parece-lhe mais fácil registrar e descrever a mudança na sensibilidade do que explicar
por que esse fenômeno teve lugar naquele momento.
Avanço civilizacional
Seja como
for, seu relato sobre as conseqüências de
tal mudança é bastante convincente e
nos revela como um tema aparentemente tão frívolo e superficial quanto o do
odor pode nos ajudar na tarefa de compreender as mentalidades e sensibilidades do passado. A passagem de uma tolerância ampla a grande variedade de odores para a suposição de que -exceção
feita a flores e perfumes- a ausência deles é preferível à sua presença simboliza e
integra a história do avanço civilizacional, e também, como salientou Sigmund
Freud, indica o preço que temos de pagar
por essa realização coletiva, o preço que
pagamos por viver num ambiente cada
vez mais higienizado. Talvez devêssemos
refletir sobre a sociedade moderna em
termos de empobrecimento olfativo.
As conclusões de Corbin sobre a transformação da sensibilidade aos odores
não devem ser limitadas ao caso francês.
Também no Reino Unido o século 19
testemunhou mais ênfase nas virtudes,
bem como no apelo estético, do sabão.
Nos últimos 20 anos, alguns historiadores -como Piero Camporesi, na Itália,
Robert Jütte, na Alemanha, e Mark Jenner, na Inglaterra- aplicaram e adaptaram o modelo de Corbin à história dos
odores em outros países. E há inclusive
diretores de museus que passaram a se
interessar pelo assunto.
Na cidade de York, no norte da Inglaterra, por exemplo, o museu de Jorvik,
inaugurado em 1984, oferece aos visitantes a reconstrução não só de artefatos do
passado medieval, mas também de odores característicos desse período. Recuando a noção de crescente intolerância
com os maus cheiros para um contexto
anterior ao estudado por Corbin, alguns
estudiosos afirmam que a Europa setecentista presenciou uma verdadeira "revolução olfativa". Talvez seja possível recuar ainda mais. Tenho a forte suspeita
de que novas pesquisas mostrarão como,
em certas partes da Europa, em certos
períodos e em certos grupos sociais, essa
"revolução" ocorreu muito antes disso.
Na Inglaterra do século 16 não era incomum que, ao se aventurarem pelas
ruas de Londres, os membros das classes
privilegiadas levassem consigo uma "pomander", uma fruta recheada com essências aromáticas que lhes servia de
proteção contra o inevitável assalto de
odores pútridos. Tal prática indica que,
já naquela época, ao menos algumas pessoas demonstravam intolerância aos
odores que infestavam as ruas. De fato,
sabe-se de médicos que argumentavam
que os maus cheiros contribuíam para
disseminar e até mesmo originar moléstias como a peste.
O odor no Brasil?
Novas pesquisas
provavelmente revelarão outras diferenças de atitude, tanto em relação aos odores em geral quanto no tocante a odores
específicos -entre pessoas da cidade e
do campo, jovens e velhos, homens e
mulheres. A realização de pesquisas em
outros continentes também pode vir a
modificar a história contada por Corbin
e seus seguidores.
Quando alguém seguirá as pegadas de
Corbin, retomando as pesquisas de Freyre no ponto em que ele as deixou, a fim
de produzir uma história dos odores no
Brasil? Quais seriam as características,
em diferentes regiões e períodos, dos
odores no Brasil? Como povos diferentes
reagem a diferentes tipos de odores? Seriam os brasileiros mais tolerantes aos
odores do que (por exemplo) os ingleses
ou os norte-americanos? Teria o Brasil
passado por uma "revolução olfativa" e,
em caso positivo, quando teria ocorrido
essa revolução? Aguardo as sugestões de
meus leitores.
Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma
História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar
Editor) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Alexandre Hubner.
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