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Juan José Saer
Freud ou a glorificação do poeta
Com muita freqüência ao longo
de sua obra, quase em cada página, Freud, cujo gosto literário
nem sempre parece ser dos melhores e que confessa, não menos freqüentemente, nem sempre de modo sincero, sua ignorância na matéria, rende, a
seu modo (embora devamos distinguir
claramente Jensen de Dostoiévski), uma
homenagem indiscutível e apaixonada à
poesia, que não deve ser entendida no
sentido restrito do verso, mas sim da
criação literária em seu conjunto.
Esse elogio constante da literatura é
formulado por duas razões muito precisas, uma retórica e outra instrumental. A
razão retórica é comum a muitos textos
de ciências humanas do século 19, pois,
achando-se em via de formação, essas
ciências adotavam como antecedente intuitivo de sua atividade as grandes obras
literárias e filosóficas do passado.
O elogio do poeta e do artista também
pode ser considerado como um tópico
retórico do discurso científico, cuja finalidade é mostrar, por contraste, os limites da ciência e a complexidade do universo cuja intuição só é acessível à arte.
Desse modo, a glorificação do poeta pode ser considerada uma idealização de
especialista.
Razão instrumental
Mas Freud
venera a poesia também por uma razão
instrumental: porque, assim como a psicose, a poesia, com seu poder de concentração significante, mostra de um modo
mais claro, mais denso, certos processos
da psique que são universais, mas que
passam despercebidos no contexto da
normalidade e até da neurose. Assim,
Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski têm
um interesse comum para o analista:
mostrar, cada um à sua maneira, um
substrato universal da personalidade, o
complexo de Édipo, que, por ser inconsciente e por estar submetido a uma série
de processos psíquicos que o disfarçam
-repressão, sublimação, transferência
etc.-, seria irreconhecível na maioria
dos seres humanos.
A veneração de Freud tem, ainda, outras razões de tipo instrumental: porque
a literatura, para ele, seria o reino do afeto por excelência. "Como psicanalista,
devo interessar-me mais pelos processos
afetivos que pelos intelectuais", declara
em "Sobre a Psicologia do Escolar". A literatura, segundo Freud, ao trabalhar na
dimensão dos afetos e das emoções, não
fez mais do que se adiantar à psicanálise:
toda a imaginária conceitual da ciência
nascente está implícita na obra dos grandes poetas.
Esses elogios instrumentais, a meu ver,
levantam uma objeção: nem toda a literatura pode ser definida como a expressão de arquétipos psicológicos universais, e a expressão desses arquétipos não
é condição suficiente de seu valor. As
"Devoções" de Donne não apresentam
nenhum arquétipo dessa espécie, enquanto a "Gradiva" de Jensen não possui
o menor interesse do ponto de vista estritamente literário. Talvez o elogio que
Freud faz da poesia esconda uma petição
de princípio: como, nos primeiros anos
da psicanálise, as únicas provas de que
ele dispunha para validar sua teoria dos
instintos eram aquelas fornecidas pela
práxis analítica, pretendia encontrar essas provas (ou de fato as encontrava) na
poesia. Mas Freud nunca apresenta a
poesia como prova de teorias que considera já bem comprovadas.
Poesia e psicose
Segundo sua obscura homenagem, portanto, poesia e psicose seriam impossibilidades. O próprio
Freud manifesta, em seus textos, seu duplo desinteresse pela psicose e por tudo o
que na arte não é conteúdo. Ambas existem apenas como exemplos. Incontrolável e excepcional como a psicose, a poesia, grosseira e paradoxalmente, apresenta a generalidade em sua estranheza.
Se levarmos em conta que, na retórica
do discurso científico, a poesia é o oposto
da especialidade, entenderemos melhor
que o elogio oblíquo não faz mais do que
insistir na velha imagem da poesia como
uma força irracional que se manifesta
através do poeta num processo do qual o
poeta é pouco responsável e consciente.
A origem divina comum à poesia e à psicose lhes atribui um status excepcional,
mas ao mesmo tempo isenta as duas de
um exame rigoroso.
No entanto Freud -e com ele a psicanálise inteira- rende, por outro caminho, uma homenagem mais profunda e
mais verdadeira à poesia e particularmente à narração. Essa homenagem reside no reconhecimento explícito de que a
análise é uma atividade essencialmente
verbal e que a palavra é o único instrumento terapêutico de que ela dispõe. A
psicanálise não investiga os fenômenos
psíquicos, e sim o discurso que, para ela,
os representa.
Os jogos de palavras, a transmissão
oral dos sonhos, o diálogo analítico, a associação livre são o material específico
do trabalho analítico, depois de ter sido o
da poesia durante séculos. Considerando os fatos desse ponto de vista, a poesia
não forneceu conteúdos para a psicanálise examinar, e sim seu repertório metodológico; não o objeto, e sim o instrumento da análise. A psicanálise e a poesia, portanto, têm como característica
comum o fato de só na linguagem, e por
meio dela, poderem conseguir os resultados a que se propõem.
Narração e alucinação
Mas a psicanálise também rende uma homenagem específica à narração. Objetivo capital da sessão analítica, a narração aparece
como o resultado dramático da interação de um conjunto de forças psíquicas
que constituem a porção oculta do sistema referencial em jogo, fazendo dele a
matéria de um desenho confuso, indefinidamente tecido e desmanchado. O
narrador não opera, nunca operou, de
outro modo em seu trabalho. Para
Freud, o sistema referencial em jogo
-nem existente nem inexistente, nem
verdadeiro nem falso a priori, mas apenas em jogo- é, no caso das alucinações, o fragmento de verdade histórica
que as fundamenta e as torna verossímeis para o doente.
Tecidas com a mesma matéria histórica, narração e alucinação, cada uma de
seu jeito, elaboram essa matéria num sistema que a transcende. Essa matéria histórica não é mais do que o fragmento
ubíquo, incerto, que fervilha como o elemento comum de um conjunto de narrações que se complementam, que se
opõem e sobrepõem, se distorcem ou se
corrigem mutuamente. A história da
narração ocidental não é menos dramática que a história clínica em que analista
e paciente constroem e descartam repetidas vezes, por meio da palavra, uma realidade possível. Essas construções são
humildes: modestas proposições sobre
um magma obscuro, movediço, fugidio.
O resultado é sempre incerto e, não raro, inexistente. Às vezes, a construção inteira tem de ser demolida para ser reerguida; às vezes, só em parte. Sugerindo,
modificando, avançando e recuando, a
narração e o diálogo analítico elaboram,
com procedimentos semelhantes, uma
estrutura frágil de verossimilhança relativa, de validade temporária, no fundo da
qual corre, como se fosse o do sangue, o
rio da memória.
Em "Análise Terminável e Interminável", Freud discute a possibilidade de finalizar uma análise. Em alguns casos, segundo ele, esse término é possível. Embora admita que a normalidade não passa de uma ficção ideal, é evidente que
Freud considera que, mediante a elaboração dos instintos, a psicanálise pode
restituir um certo equilíbrio ao sujeito.
Particularidade redutora
Assim,
do modo como aparece em muitos textos de Freud, a construção narrativa da
psicanálise, em contraste com a narração
em geral, apresenta uma particularidade
redutora: a de pretender que existe um
conflito preciso, uma intriga significante
que deve ser resolvida, o que equivale a
dizer que, em certas circunstâncias, existe análise terminável.
Essa particularidade poderia transformar a narração analítica num simples
caso da forma narrativa. Dito de outro
modo, em um gênero. Para a narração
analítica, assim como para o romance
policial, pode haver desenlace.
O mesmo não acontece com a outra:
enquanto a análise pretende deixar, de
sua construção, um conteúdo, a narração deixa apenas o procedimento, a própria construção. A narração não é terminável; fica sempre inacabada. Valéry já
dizia: um poema nunca se termina, apenas se abandona.
Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino,
autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.
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