São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004 |
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+ brasil 504 d.C. Hermano Vianna
Suposta necessidade de não impor os interesses "de cima" esvazia muitos projetos da arquitetura atual
Nasci na Paraíba. Mas, quando
me encostam na parede com
perguntas incômodas sobre
identidade regional, quase
sempre respondo: sou um paraibano de
Brasília. Pois foi em Brasília que passei os
períodos mais importantes da minha
"formação", cinco anos da infância e cinco anos da adolescência. Adoro a cidade.
Até hoje, quando chego lá, me sinto em
casa.
No plano urbanístico e na arquitetura,
as coisas que mais me agradam são detalhes que devem passar despercebidos para outras pessoas. O barro vermelho entre as placas de concreto que formam as
calçadas. A curvatura dos postes de luz.
A brancura encardida das passagens
subterrâneas que cruzam o Eixão. O design dos pontos de ônibus.
Todas as inovações, que deixam a cidade mais variada, me incomodam. Gosto
da uniformidade. Detesto essas superquadras novas com edifícios que não
têm mais três prumadas. Sei que são
conseqüências de críticas tolas e fáceis
contra o autoritarismo ou totalitarismo
da arquitetura moderna. Lembro-me,
por exemplo, de Marshall Berman repetindo o clichê que acusa Brasília de não
ter esquinas ou outra bobagem do gênero e que isso impede intencionalmente a
formação de uma rica vida comunitária.
Nunca tive tanta e tão intensa vida comunitária quanto em Brasília. Vivíamos
sempre em bando, em milhares de esquinas virtuais que quem não é da cidade
-ou quem aplica sobre a cidade o mesmo olhar com o qual analisa o urbanismo tradicional- nunca vai encontrar.
Lúcio Costa e Oscar Niemeyer podem ter
planejado uma outra vida.
A realidade era bem diferente. No lugar
de um paraíso modernista-comunista,
uma ditadura militar de direita, bem careta e cafona, vivendo a ascensão e queda
de um milagre econômico ridículo. Nossos pais e nossos urbanistas não tinham
-e talvez ainda não tenham, essa é uma
história que ainda está por ser escrita-
idéia dos usos punks que seus queridos
filhos e pioneiros usuários inventaram
para o Plano Piloto.
Por ter tido essa experiência em recanto tão "experimental", nunca consegui
levar a sério o medo que tanta gente demonstra ter, até para compartilhar uma
confortável opinião politicamente correta, da "modernização imposta de cima".
Tenho certamente mais simpatia por
quase tudo -mas não tudo- que vem
das bases, que é fruto de decisão coletiva.
Mas sei que nenhum planejamento, por
mais absolutista que seja, vai conseguir
controlar a realidade -e que às vezes fenômenos sociais ou culturais que surgem em situações impostas "de cima"
podem ser, para usar uma palavra em
desuso, revolucionários.
Meu herói dessa turma é Cedric Price, radical crítico do planejamento urbano, advogado da idéia de que nenhum plano é sempre melhor que qualquer plano e também de que os edifícios deveriam ser construídos por um período determinado de tempo e depois derrubados para dar lugar a outras coisas. Uma de suas poucas obras concluídas é o Inter-Action Centre, em Londres, "edifício" formado por vários contêineres que podiam ser mudados de lugar para se adaptar aos usos que a comunidade ia inventando para o local. Nos anos 90 quiseram tombar o edifício. Price, que morreu no ano passado, fez campanha contra o tombamento, alegando que o projeto era antigo, já tinha cumprido seu papel no mundo e deveria ser substituído por algo melhor. Cedric Price não estava pensando sozinho. Com ele, outros visionários trabalhavam com a idéia de explorar a indeterminação, a mobilidade, a transformação constante, a instabilidade na arquitetura. Como Buckminster Fuller, que sonhava com habitações portáteis. Ou Yona Friedman, que inventou o Museu de Tecnologias Simples, em Madras, na Índia, documentando técnicas de autoconstrução com materiais leves e baratos, como o bambu. Ou o pessoal do coletivo Archigram, que já nos anos 60 planejava a Plug-in City ou o L.A.W.U.N, abreviação para Locally Available World Unseen Network, algo muito próximo da World Wide Web dos dias de hoje traduzida para a linguagem do urbanismo, criticando a inércia dos edifícios e dizendo que os usuários deveriam se libertar do papel de reféns dos planos dos arquitetos. Edifícios estáticos Essas idéias estão melhor representadas nos textos -elogiando ao mesmo tempo os vazios da cidade de Berlim pré-reforma e a aglomeração do caos urbano de Lagos, Nigéria- do que nos edifícios de Rem Koolhaas, que continuam -apesar de todos os efeitos especiais- tão estáticos como qualquer igreja renascentista. Para procurar projetos que levam os questionamentos de Cedric Price e cia. adiante, com a tecnologia dos dias de hoje facilitando a maleabilidade das construções, o melhor é olhar para outros arquitetos holandeses, como Lars Spuybroek ou Kaas Oosterhuis, divulgadores da transarquitetura, da arquitetura líquida ou da arquitetura programável. Lars Spuybroek cita Oliver Sacks, Francisco Varela e Gilles Deleuze para justificar seus projetos, que tentam fundir arquitetura e mídia ou -melhor- impõem a contaminação da mídia no território da arquitetura, como um vírus no programa arquitetônico. Os edifícios-computadores misturariam parede e piso, corpo e geometria, objeto e ambiente, ação e forma, tudo com o clicar de mouses ou de futuras interfaces com chips e telas espalhados por todo canto. Um de seus projetos, uma torre implantada em Doetinchem, está ligado à web, por onde os habitantes da cidade podem responder questionário sobre seus estados emocionais -e o conjunto de respostas muda a cor e a forma da superfície de poliéster. Kaas Oosterhuis fala também de fusão, dessa vez da fusão eletrônica entre arte e arquitetura, tratando o edifício como uma máquina que processa informação e portanto interage e se modifica de acordo com os dados captados por seus sensores. O edifício mudaria de forma em tempo real, como um corpo que tem o seu próprio metabolismo ou como um jogo jogado por todo mundo que usa aquele lugar. Promessa e produto A perspectiva de tanta interatividade, de tanta possibilidade de escolha, de edifícios mudando o tempo todo já me deixa cansado ou perdido. Como vou encontrar meu caminho num lugar que não tem mais pontos de referências, pois os pontos mudam de lugar e forma ininterruptamente? Teremos que andar com aparelhos de GPS (Sistema de Posicionamento Global, via satélite) para ir de um bairro a outro? Vamos sentir saudade de planejamento urbano autoritário, quando um arquiteto considerado genial -não importava tanto se era genial mesmo- decidia o que era bom para todos? Tantas dúvidas... Ainda bem que esses arquitetos, com tantas boas idéias, constroem tão pouco. Podemos sonhar com essa história de não-arquitetura -ou superarquitetura, tanto faz- que nunca saiu do papel, suspirando por um mundo que poderia ter sido, mas não foi. Às vezes, como no caso de Koolhaas -que também demorou muito para ter seus edifícios finalmente construídos- a promessa é bem mais interessante que o produto realizado... Enquanto isso, enquanto a arquitetura interativa, libertadoramente anárquica ou político-corretamente democrática não vira nosso cotidiano, teremos que nos contentar por muito tempo ainda com gênios que vão nos entregar nossas casas, locais de trabalho e cidades prontinhos, sem nem ouvir nossas opiniões sobre o que realmente queríamos, ou apenas fingindo levar nossas opiniões em conta. Mas isso a gente tira de letra. Eles podem continuar pensando que controlam nossas vidas. A gente continua inventando a vida, muitas vezes bem banal, outras vezes bem bacana, fora dos seus planos geniais. Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C.", do Mais!. Texto Anterior: + autores: Freud ou a glorificação do poeta Próximo Texto: + livros: Os novos donos do poder Índice |
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