São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004 |
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+ livros Sob o pano de fundo da crise da aristocracia e a ascensão da burguesia no século 19, "Armance" e "O Vermelho e o Negro", de Stendhal, misturam ficção e autobiografia Os novos donos do poder
Evando Nascimento
Dois livros de Stendhal, "Armance" e "O Vermelho e o Negro",
estão sendo republicados com
grande apuro editorial e em excelentes traduções.
Romance de estréia do autor, aos 43
anos, segundo ele a idade ideal para iniciar uma carreira literária, "Armance"
(1827) é composto de inúmeras citações,
a começar pelas epígrafes dos capítulos.
Shakespeare aí comparece diversas vezes
e mesmo um inesperado Camões, ambos citados em idioma original na própria edição francesa.
Algumas dessas referências são contudo truncadas ou falsamente atribuídas.
Se Stendhal fosse um erudito, o defeito
seria grave, mas, como se trata de um escritor imaginativo, se torna mais um dos
lances do jogo ficcional. De tais lições
Machado de Assis fez imenso proveito,
citando Stendhal desde o prefácio das
"Memórias Póstumas de Brás Cubas",
com relação a cem possíveis leitores, embora o defunto autor previsse um número ainda menor para sua obra. A ironia
da expressão "happy few" já é uma citação de Shakespeare.
O que encanta em Stendhal é o refinamento da linguagem, nada pedante e de uma agilidade completamente atual, em intenso diálogo com seus leitores. Não esqueçamos que a história de Julien Sorel se baseia num "faits-divers", um caso policial que o autor conheceu por meio da imprensa. Mas o jogo imaginativo vai além da substituição dos nomes reais pelos fictícios, pois se tem toda uma realidade política e econômica criticamente recriada. É também preciso lembrar que grande parte da literatura francesa, até o início do século 20, passava pelos salões das classes dominantes, que fizeram a fortuna e a desgraça de artistas e escritores. Stendhal lustrou em vários deles, sabendo depois retratá-los com ironia e acidez. Proust terá sido o último a fazer a pintura do declínio dos aristocratas, em processo de substituição pelos novos donos do poder, os burgueses, que passarão a impor cada vez mais a moda, na literatura e no "grand monde". Mas, ao contrário de Proust, que precisou se afastar da mundanidade para recuperar o tempo perdido via escritura, Stendhal exerceu com grande verve a função de "causeur", ao tempo em que escrevia seus livros. Celebridade Como relata Michel Crouzet, um de seus melhores biógrafos, Henri Beyle/ Stendhal conheceu em vida a celebridade que ambicionava, sendo admirado por Balzac, de que não gostava, e por Goethe, que amava e o qual cita, dando o título de "As Afinidades Eletivas" a um dos capítulos de "O Vermelho e o Negro". Este livro toma como ponto de partida as "Confissões", de Rousseau, que é uma das obras de cabeceira de Julien Sorel. Assim, o texto autobiográfico do filósofo iluminista, que se assemelha a um romance, pontua diversas atitudes do protagonista de Stendhal. A vida ficcional de Julien será construída por meio de suas leituras e devaneios, tal como mais tarde no mesmo século a Madame Bovary de Gustave Flaubert se deixará conduzir pelos livros que lê. Em contrapartida, Stendhal escreveu suas próprias memórias sob modo romanesco, em "Vida de Henry Brulard" (1835). Resumamos: Rousseau ficcionaliza suas confissões, rompendo os limites entre autobiografia e romance, seu leitor Julien Sorel mistura perigosamente a ficção com a vida, e o próprio Stendhal imbrica passagens da existência às de suas criações literárias, tornando-se personagem de si mesmo. Há nisso um deslizamento de máscaras que torna a literatura um refazer constante dos textos e das biografias que os acompanham, tal como redescobre a crítica contemporânea. Evando Nascimento é pesquisador do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), autor de "Derrida e a Literatura" (Ed. da Universidade Federal Fluminense) e de "Ângulos - Literatura & Outras Artes" (Ed. da Universidade Federal de Juiz de Fora/Argos). Armance 288 págs., R$ 28,00 de Stendhal. Tradução de Leila de Aguiar Costa. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881). O Vermelho e o Negro 576 págs., R$ 49,00 de Stendhal. Tradução de Raquel Prado. Ed. Cosac & Naify (r. General Jardim, 770, 2º andar, CEP 01223-010, SP, tel. 0/xx/ 11/3218-1444). Texto Anterior: + brasil 504 d.C.: As vantagens do absolutismo arquitetônico Próximo Texto: Ponto de fuga: Sussurros secretos Índice |
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