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+ música
SAARIAHO MELOS SEM MEL
MISTURANDO INSTRUMENTOS, ELETRÔNICA, VOZ E POESIA, A COMPOSITORA FINLANDESA CONSEGUE CONCILIAR RADICALISMO E INTUIÇÃO
Saariaho. Esse nome de sonoridade
estranha é o de mais uma compositora fora do tom, que começa a
brilhar neste começo de novo século, mantendo acesas e luminosas as
propostas das vanguardas musicais do
século 20. Finlandesa, nascida em Helsinki, em 1952, Kaija Saariaho é uma das
grandes surpresas da nova safra de compositores que emergiu nos últimos anos.
Na sua formação musical chamam a
atenção os estudos em 1979, em Siena,
com o italiano Franco Donatoni, e em
1980-82, em Freiburg, com o inglês Brian
Ferneyhough, figura de proa da chamada "nova complexidade". Influenciou-a
também, sobremodo, a música "espectral" dos franceses Tristan Murail e Gérard Grisey, fulcrada na microanálise
dos harmônicos superiores do som. A
partir de 1982, iniciou-se nas técnicas digitais, frequentando os cursos do Ircam,
o famoso Instituto de Música dirigido
por Pierre Boulez em Paris, onde passou
a viver e a trabalhar. Antes de dedicar-se
à música, estudou na Universidade de
Artes Visuais de Helsinki, episódio não
descartável de sua vida artística, dados os
seus interesses interdisciplinares. Suas
primeiras composições conhecidas datam do fim dos anos 70, mas suas obras
principais, que se desenvolvem a seguir
com crescente intensidade, só vieram a
alcançar maior repercussão na década de
90, quando sua música começou a ser interpretada por quartetos conhecidos como o Kronos e o Arditti e a ser difundida
em gravações de companhias de maior
porte, com a participação de artistas renomados, como o violinista Gidon Kramer e o maestro Esa-Peka Salonen.
Dentre as suas composições mais relevantes estão "Laconisme de l'Aile", para
flauta (1981-82), "Lonh", para soprano e
eletrônica (1995-96), "Près", para violoncelo e eletrônica (1992), "Noa Noa", para
flauta e eletrônica (1992), "Amers", para
violoncelo e conjunto (1992), "Six Japanese Gardens", para percussão e eletrônica (1999), "L'Aile du Songe", para flauta e orquestra (2000). A ópera "L'Amour
de Loin" estreou em Paris em 2001. E há
notícia de uma composição orquestral
mais recente, "Orion", apresentada em
janeiro deste ano nos Estados Unidos.
No CD-ROM "Prisma" (1999), de que
tratarei mais adiante, podem-se ouvir
ainda, além da música eletrônica que leva esse título e das execuções integrais de
"Amers" e "Mirrors" (1997), fragmentos
de outras composições importantes: "Du
Cristal" (1989), "Nimphea" (1987), "Fall"
(1995), "Caliban's Dream" (1996), "La
Dame a la Licorne" (1993), "Graal Theatre" (1996).
Uma característica de Saariaho, que
sobressai à primeira audição, é o seu radicalismo. Ela não facilita. Leva suas perquirições musicais às últimas consequências. Mas o faz com inteligência,
sensibilidade e até com glamour. Ela
quer criar música para ser ouvida, e não
apenas apreciada pela sua escritura. Parte da análise e da síntese exploratória do
som, compõe com computador, joga
com vozes, instrumentos e eletrônica,
mas reelabora a matéria formal dando liberdade aos processos intuitivos com
vista a um resultado expressional impactante. Outra característica é a sua convivialidade com a poesia, que integra visceralmente a sua música, do trovador provençal Jaufre Rudel ao francês Saint-John Perse.
Mediadas e sensibilizadas frequentemente pelo texto poético, as composições de Saariaho encantam, convidam à escuta, mais do que se propõem a um
severo "approach" de viés técnico
Mas o que chama a atenção, desde logo, é a colorística de suas obras. Menos
que o estruturalismo harmônico dos
pós-serialistas, a tonalidade ou a atonalidade, o que avulta em suas composições
é a presença da materialidade sonora,
acentuada por diferentes formas de ataque e de toque e de novas configurações
microintervalares, obtidas por técnicas
como a da "scordatura" ou desafinação
programada das cordas do instrumento
-abordagens que cresceram de interesse nos últimos anos através da obras de
compositores como Scelsi, Ligeti, Ferneyhough. Mediadas e sensibilizadas frequentemente pelo texto poético, as composições de Saariaho encantam, convidam à escuta, mais do que se propõem a
um severo "approach" de viés técnico.
Raiz da fala
Preocupam-na acima
de tudo o timbre e as microssondagens
do som, a cor, o corpus sonoro e as suas
mínimas reverberações acústicas, daí resultando uma música extremamente
sensorial, plástica, provocativa. Os textos
poéticos são instigações vocoverbais,
que levam à raiz da fala, onde se confundem, em articulações pré-silábicas, ruidísticas, com o sopro da flauta e o hausto
dos ataques do som. "Transformar a respiração em som musical" é um dos lemas da compositora.
Fala-se, a propósito de sua música, em
"som-cor", "harmonia-timbre" (Ivanka
Stoianova). Ela mesma se diz interessada
em "utilizar certos fenômenos sonoros
como base da escrita da harmonia". Em
outras palavras, o timbre é o ponto de
partida para a construção da harmonia,
que se processa muitas vezes por meio da
fusão de instrumentos com eletrônica, e
a base exploratória do som, o que ela
chama de "eixo timbral" (abrangendo as
gamas do som claro ao ruído). Há, porém, uma qualidade vivencial nessas
obras em que a melodia cede a primazia
à "harmonia-timbre".
Sim, há vida vivida nesse "melos" sem
mel. Ela diz, por exemplo, que começou
a escrever "Du Cristal" quando ouviu pela primeira vez, num exame pré-natal, a
ecografia do coração do seu filho Alex, e
que a experiência de ouvir dois corações
no seu corpo, um batendo mais rápida,
outro mais compassadamente, e mais
adiante de observar o coração do filho
que crescia ir aproximando o seu andamento das batidas do seu próprio coração, influenciou as soluções rítmicas daquela peça.
Esse alento vital anima outras considerações musicais, mais específicas, da
compositora. A flauta e a voz, em estreita
associação, assim como o violoncelo,
contaminados pela eletrônica, são dominantes em sua esfera composicional. Ela
afirma que, quando pensa na flauta, imagina uma gama, mas não propriamente
uma escala de alturas musicais, e sim
uma gama que vem dos sons mais graves, ruidísticos, com muita respiração,
aos sons mais agudos e brilhantes nos registros altos. É uma escala material, timbrística, do ruído ao som, a que ela tem
em mente, antes que uma escala intervalar. Utiliza todo um arsenal de técnicas
para produzir sons inusitados: sons soprados, sussurrados, silabados, fala e
canto simultâneos com o som da flauta,
estalos, cantos, vibratos e glissandos, trilos com harmônicos. O mesmo se passa
com o violoncelo, em que ela visualiza
um quadro variável de sons claros, tocados normalmente, contrapostos à gama
de ruídos produzida por várias práticas
como o emprego do arco em regiões inusitadas do instrumento, os toques "sul
tasto" (sobre o tasto, ou divisória das
cordas ) ou "sul ponticello" (na região do
cavalete), os tremolos e suas variantes.
Posto que há muito integradas ao repertório da música contemporânea
(lembre-se o exemplo paradigmático
dos "Cinco Movimentos para Quarteto
de Cordas", op. 5, de Webern, ou o da
"Suíte Lírica", de Berg), essas técnicas
aqui são alvo de uma sistematização obsessiva, que acaba constituindo um traço
caracterológico da compositora.
Embora a música de Saariaho possa ser
ouvida, a essa altura, em diversas gravações, o álbum "Prisma" merece consideração especial porque, a par de difundir,
na íntegra, em CD-áudio, algumas de
suas obras mais significativas, contém
ainda um CD-ROM, a meu ver modelar
como construção comunicativa, que
constitui uma introdução sofisticada,
abrangente e cativante do seu trabalho.
Pioneiro, nesse sentido, foi o CD-ROM
"All My Hummingbirds Have Alibis",
com a música eletrônico-vocal de Morton Subotnik, lançado há 10 anos pela
produtora Voyager, de Nova York.
Beneficiado pela riqueza informacional dos novos softwares e por uma concepção criativa, com mais de 15 horas de
animações, o multimídia de "Prisma",
além de proporcionar uma torrente de
audições analisadas e de informações sobre Saariaho e seus métodos de trabalho,
vai animar o usuário, por certo, a ouvir
as composições "Lonh", "Près", "NoaNoa" e "Six Japanese Gardens", que se
encontram no áudio, amostragens exuberantes da sua obra, com ênfase, respectivamente, na voz, no violoncelo, na
flauta e na percussão.
"Lonh" é um capítulo à parte. A música
provém da canção do trovador provençal Jaufre Rudel, que se ouve parcialmente no idioma e na melodia modalizante
original e que renasce em torturada desconstrução expressiva, sob o crivo da linguagem espectro-sensorial -a harmonia de timbres- da compositora.Quem
certamente a introduziu no universo trovadoresco foi o poeta Jacques Roubaud,
seu amigo, de quem musicou também
um texto poético e que é um especialista
na poesia em "langue d'oc". "Lohn", que
significa "longe", em provençal, daria
origem à ópera "O Amor de Longe", em
que é tematizada a vida de Rudel, já encenada na Europa e nos Estados Unidos,
depois de sua estréia parisiense. A poesia
avulta ainda num outro CD no qual reina
a flauta, sob inspiração dos textos de
Saint-John Perse, em duas composições,
"Laconisme de l'Aile" e "L'Aile du Songe", que Saariaho faz entremear com a
leitura de poemas do livro "Oiseaux", em
"ambientação sonora" de cantos de pássaros mixados à flauta e a material computadorizado.
Intervenção lúdica
Criado sob a
supervisão de Saariaho e Jean-Baptiste
Barrière, o CD-ROM de "Prisma" é dividido em cinco seções, "Nuages" (Nuvens), "Moissons" (Colheitas), "Spectres" (Espectros), "Amers" (A-mar-gos),
"Mirrors" (Espelhos), cada qual subdividida em outras tantas, com fartura de
material musical e visual. A primeira seção apresenta, em autobiografia, entrevistas e opiniões da Saariaho, além de
trechos de composições de suas várias
fases numa imaginária sala de concertos
com interpretações ao vivo. Narrada
fragmentariamente pela compositora, a
autobiografia se articula sobre variações
metamórficas do seu rosto, montadas
sobre fotos e vídeos digitalizados, com
resultados expressivos e imprevistos.
Em "Colheitas" podemos contactar os
intérpretes, o violoncelista Anssi Kartunen e a flautista Camila Huitinga, que
nos levam a conhecer intimamente as
técnicas utilizadas nas composições,
com apoio em vídeos, partituras e vocabulário didático. "Espectros", a cargo de
Jean-Baptiste Barrière, explicita as ferramentas digitais e eletrônicas de que Saariaho se utiliza, os procedimentos de
análise, síntese e filtragem sonora, os vários modos de tratamento do som, em
estúdio e ao vivo. "Amers" nos põe em
contato com essa composição, explicada
minudentemente, com acesso à partitura, pela musicóloga Ivanka Stoianova,
que nos traz também informações sobre
a gênese da obra e as suas relações com a
poesia de Saint-John Perse. "Mirrors", finalmente, é uma composição interativa
especialmente feita para provocar a intervenção lúdica do usuário, que também pode "ouvê-la" num belo vídeo de
imagens ondulatórias criado por Jean-Baptiste Mathieu.
A programação digital da peça, escrita
para flauta e violoncelo, com disposição
visual em duas pistas coloridas acompanhadas dos respectivos fragmentos partiturais, permite que se rearranjem os
fragmentos pré-gravados numa reconstrução livre ou de acordo com os critérios estipulados pela compositora. A
concepção de todo o CD-ROM é muito
atrativa, sugerindo novos caminhos para
a veiculação e a assimilação da música
contemporânea: as provocações e surpresas audiovisuais que o multimídia desencadeia estimulam o espectador a deixar a apatia e a enfrentar a maior complexidade e novidade dessa linguagem
musical em relação aos padrões habituais da música de consumo. Uma das
mais bem-vindas novidades na área da
música erudita, nos últimos tempos, foi
o crescente número de compositoras significativas. Ustvólskaia, Gubaidulina,
Tania León, Saariaho, para citar algumas
das mais eminentes cujas obras despontaram ou foram reveladas nas duas últimas décadas, revitalizam a paisagem
musical, trazendo para a linguagem contemporânea, sem perda de rigor ou radicalismo, as marcas da intuição, da sensorialidade e da sensibilidade, características do universo feminino, que matizam e
reanimam as tantas vezes áridas sondagens da música-pensamento.
Augusto de Campos é poeta, tradutor e ensaísta,
autor de "Música de Invenção" e "Despoesia" (ed.
Perspectiva), entre outros livros.
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