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Ensaios reunidos em "Um Limite Tenso", como de Alain Badiou e Bento Prado Jr.,
abordam a relação entre filosofia e psicanálise na obra de Jacques Lacan
A crise inquietante dos contrários
Os textos combinam a energia da crítica independente com o virtuosismo na elegância literária
Oswaldo Giacoia Jr.
especial para a Folha
O leitor deve à inspiração de Vladimir Safatle a iniciativa de
transformar o centenário de
nascimento de Jacques Lacan,
em 2001, numa ocasião para dedicar a
sua obra uma atenção filosófica cuidadosa, que efetivamente se colocasse à altura
da importância dessa obra e fizesse justiça à contribuição que o legado clínico e
teórico de Lacan aporta às ciências humanas contemporâneas.
Como facilmente se constata, ao percorrer as páginas dessa coletânea, aquele
objetivo foi plenamente alcançado, pois
os estudos ali reunidos combinam admiravelmente o rigor analítico com o engenho hermenêutico, a energia da crítica
independente com o virtuosismo na elegância literária.
O interesse principal do livro consiste
no exame escrupuloso das multifacetadas relações entre filosofia e psicanálise
em Lacan, partindo da mais viva consciência de que não se poderia tratar aqui
de uma convivência harmoniosa, apesar
de Lacan sempre ter flertado com os filósofos, de cujo pensamento se apropriou
por deslocamento.
Reservada cautela
Essa percepção
fica desde logo consignada na inquietação de Alain Badiou, que abre o primeiro
ensaio da coletânea, marcando o tom de
reservada cautela, própria do front filosófico: "Mas Lacan posicionou sua experiência sob a bandeira da antifilosofia.
Vamos homologar sem exame prévio a
reintegração, entre nós, de um antifilósofo declarado? Reunir-se sob o emblema sarcástico da antifilosofia não seria
um julgamento a respeito de nossa própria falência filosófica?" (pág. 14).
Safatle organiza seu livro com base em
duas coordenadas de integração dos textos que reúne: num eixo denominado
"conexões" e em outro chamado "interiores". Eles definem campos de inserção
apropriados à natureza das contribuições que, no primeiro registro, exploram
-num ângulo de exterioridade- as relações transversais e colaterais entre as
teses psicanalíticas de Lacan e suas implicações e apoios filosóficos. No segundo caso, altera-se a perspectiva -que se
institui como que num plano de verticalidade- explorando o surgimento, desde o interior do trabalho psicanalítico lacaniano, de problemáticas genuinamente filosóficas por ele concitadas.
No eixo transversal das "conexões", as
contribuições variam desde a estilização,
por Badiou, das relações ambivalentes
entre Lacan e Platão, como superfície de
projeção das tensões entre "antifilosofia"
e psicanálise, até a exploração, por Paulo
Arantes e Ruy Fausto, dos vínculos entre
psicanálise e dialética, especialmente as
influências da lógica do reconhecimento
na constituição social da estrutura da
subjetividade.
Sujeito e verdade
Por sua vez, o
ensaio de Peter Dews aproxima Lacan de
Habermas relativamente aos problemas
da linguagem, validade e transcendência, destacando a insistência singular de
Lacan na íntima vinculação entre os conceitos de sujeito e de verdade. Para Monique David-Ménard, tão distintos
quanto possam se apresentar os campos
da teorização filosófica e psicanalítica, a
apreensão conceitual (e, portanto, filosófica) dos modos de intervenção da psicanálise acarreta consequências para as
pretensões da própria filosofia, tanto no
plano ontológico quanto no lógico e no
epistêmico.
Slavoj Zizek, por sua vez, mostra admiravelmente como, em Lacan, o real tem
que ser admitido como aparência e que
consequências podem ser daí derivadas
para a compreensão do imaginário religioso em Lacan. Encerrando as "conexões", Safatle pergunta pelo "locus" próprio da ruptura de Lacan com o paradigma da intersubjetividade, detectando aí
uma viragem em direção a uma nova figura de apreensão conceitual da clínica,
que orientará o trabalho ulterior de Lacan. Esta seria determinada pela crítica à
filosofia prática de Kant, feita em articulação com o marquês de Sade.
No registro dos "interiores", Bento
Prado Jr. reconstitui as referências de Lacan à biologia do comportamento, como
meio para compreender a estruturação
da metapsicologia segundo a tripartição
entre real, simbólico e imaginário; ao fazê-lo, demonstra que a imbricação entre
psicanálise e filosofia constitui uma dimensão interna essencial à obra lacaniana. Nesse mesmo sentido, Antonia Soulez tematiza a ligação entre o estilo em
Lacan e o estilo de Lacan, pondo em evidência que as peculiaridades do estilo
respondem estritamente ao objeto de
que esse trata.
Richard Theisen Simanke considera
que o uso e o sentido preciso da metáfora, em Lacan, constitui o elemento que
justifica conceitualmente a aparente arbitrariedade que caracteriza a apropriação lacaniana dos conceitos fundamentais de Freud e outros pensadores, revelando-se tanto como estratégia de leitura
quanto instrumento de produção teórica. O texto de Célio Garcia se propõe a
percorrer uma parte significativa da trajetória de Lacan, para vislumbrar perspectivas que se insinuam no horizonte
teórico formado pelas explorações lacanianas da linguagem, da lógica, da lei e
da política, e que são para nós da mais
extrema relevância e atualidade.
O sentido na enunciação
Concluindo a seção "interiores" -em que as
demandas filosóficas irrompem do próprio âmago do trabalho desenvolvido na
clínica analítica-, Jean-Pierre Marcos
reconstitui a descrição fenomenológica
da experiência psicanalítica, proposta
por Lacan, discernindo nela uma importante inflexão, que atenua a importância
da função apofântica da linguagem, à
medida que o sentido já não residiria
mais agora, prioritária ou exclusivamente, no que é dito, mas no ato mesmo de
dizer, na enunciação.
Ao concluirmos a leitura de "Um Limite Tenso", não podemos deixar de situar
a psicanálise, sob o signo contemporâneo de uma crise profunda e duradoura,
em seu campo teórico e doutrinário, não
menos do que no âmbito clínico e político-institucional. Esse mesmo diagnóstico vale também para a filosofia e as assim
chamadas ciências do espírito.
Limite fecundo
E, no entanto, no
interior dessa crise, os temas maiores de
Lacan -do sujeito e da verdade, do imaginário e do simbólico, da ética, responsabilidade, da lei e da liberdade, do ser e
do real, do desejo e do ser-no-mundo-
não cessam de reverberar, apresentando-se como injunções incontornáveis a
mobilizar o empenho da reflexão filosófica e da escuta analítica. Razão pela qual
essa nova contribuição de Safatle é muito
mais que bem-vinda, pois, nessas circunstâncias, é oportuna e urgente uma
retomada, "filosoficamente advertida",
da obra seminal de Lacan.
É certo que nela o convívio entre a psicanálise e a filosofia é marcado por um limite tenso e conflituoso, não isento de
problemas graves e de difícil solução.
Mas nem por isso esse limite é menos fecundo, pois talvez o traço de união entre
esses dois instáveis domínios da cultura
seja constituído precisamente pela mesma obstinação em transformar impasses
em estímulo, de transfigurar os próprios
restos calcinados, descobrindo, nas palavras de Safatle, "a força de um pensamento que" sabe "crescer por meio da
exploração sistemática de seus próprios
impasses" (pág. 9).
Oswaldo Giacoia Jr. é professor livre-docente de
filosofia na Universidade Estadual de Campinas. É
autor de "Nietzsche" (Publifolha) e "Labirintos da
Alma" (ed. da Unicamp), entre outros livros.
Um Limite Tenso
372 págs., R$ 30,00
Vladimir Safatle (org.). Ed. Unesp (praça da Sé,
108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3242-7171).
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