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Dois estudos lançam novas luzes sobre a escravidão no Rio de Janeiro
e a monocultura de fumo, açúcar e mandioca na Bahia durante o século 19
A plantation e o quilombo
O autor encaminha seu estudo contra a tradição da historiografia marxista
Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha
Brasilianistas existiram e existem
por aí às pencas, muitos dos quais
vão sendo atualmente olvidados,
depois da voga em torno deles na
década de 70, mas este, B.J. Barickman,
destaca-se por abordar a agricultura brasileira nos finais do século 18 e no século
19 no Recôncavo Baiano, investigando a
produção de fumo, açúcar e mandioca
em suas relações com a escravidão [em
"Um Contraponto Baiano"]. O brasilianista da agricultura parafraseou o título
do famoso livro do cubano Fernando
Ortiz, "Contrapunteo del Tabaco y el
Azúcar", o cromático "black and white"
da ilha de Fidel Castro, com objetivo de
estudar entre nós "a diversidade possível
numa sociedade e numa economia permeadas pelo escravismo e dominadas
pela agricultura de exportação".
Com profusão de documentos e análises minuciosas, o autor encaminha seu
estudo contra a tradição da historiografia marxista, representada em São Paulo,
depois da revolução de 30, sobretudo por
Caio Prado Jr., que definiu o Brasil escravocrata por meio da mola mestra das
plantations (a grande lavoura da monocultura), destinadas a abastecer, pela lógica colonialista, os mercados externos.
A rocinha
Eis o sistema de plantation: produção econômica alicerçada em
dois grupos sociais -senhores de engenho e escravos- com o objetivo de estabelecer uma agricultura de exportação.
Isso é o básico, o essencial, o fundamento
da sociedade brasileira desde o século 16,
segundo a "visão plantacionista"; o resto
é secundário, todas as outras atividades
econômicas são irrelevantes e periféricas. A plantation colonial acabou por
obstaculizar a formação de um mercado
interno, condenando a população à mera agricultura de subsistência sem o influxo da troca monetária.
A tese do brasilianista procura pôr em
relevo o contrário disso tudo, defendendo a idéia de que a "utilização do trabalho escravo na agricultura de exportação
não constituía, em si, uma barreira intransponível para o desenvolvimento de
um mercado interno".
A subtese de Barickman é de que os senhores de engenho não monopolizavam
o uso da terra no Nordeste. O que me
deixa com a pulga atrás da orelha é a suspeita de que essa leitura do passado escravista venha engrossar o caldo neoliberal da atualidade, apresentando os problemas de casa como sendo de ordem
exclusivamente doméstica, ou seja, a atitude ideológica de subestimar o estado
de infelicidade social em decorrência da
inserção subalterna do país no sistema
mundial.
É evidente que, ao lado da plantation,
medrava o roçadinho, assim como alguns impulsos de economia interna, mas
a verdade é o todo, e este é representado
pelo destino colonial: a exportação de
matéria-prima, de comida, de recursos
naturais e estratégicos. Nascemos e trabalhamos para enricar as metrópoles.
Essa tem sido nossa identidade histórica.
O mais interessante no trabalho de Barickman é a informação sobre a dieta da
população baiana e o papel preponderante que nela cabe a mandioca, a rainha
do Brasil, ou a farinha de mandioca como o "pão da terra". A ciência da nutrição (como é o caso da medicina de Silva
Mello) já mostrou que a mandioca é
mais nutritiva do que o trigo. A mandioca reinou soberana na lavoura de subsistência do Recôncavo Baiano. Essa prodigiosa planta tropical continua sendo um
desafio para a ciência: ela é, ao mesmo
tempo, alimento e combustível. Daqui a
pouco poderemos, cá na terra, olhar para
os aviões movidos a mandioca rasgando
nosso belo céu de anil.
Metonímia da liberdade
O trinômio monocultura, latifúndio e escravidão gerou revolta e rebelião em vários
momentos da história do Brasil. É o caso
dos quilombos, a fuga e a resistência dos
escravos. O mais famoso foi o Zumbi dos
Palmares, o general dos negros insubmissos. Agora o historiador Eduardo Silva, em seu livro "As Camélias do Leblon
e a Abolição da Escravatura", amplia a
semântica do quilombo, fazendo a distinção entre o quilombo "de rompimento" e o quilombo "abolicionista", tendo
como paradigma desse último o que
apareceu no bairro do Rio de Janeiro durante a crise final da escravidão.
É o quilombo Leblond, o quilombo Le
Blon, o quilombo do Leblon, cuja característica social e política é a negociação
com a sociedade mais ampla. Trata-se de
um quilombo midiático, em que o ícone
era a flor "dama das camélias" ou, no dizer do autor, "um quilombo simbólico,
feito para produzir objetos simbólicos.
Era lá, exatamente, o símbolo por excelência do movimento abolicionista". As
camélias brancas ou rosadas funcionavam como metonímia da liberdade.
Até a princesa Isabel enfeitava os seus
vestidos com as flores da liberdade, as camélias do Leblon, além de proteger alguns escravos fugitivos. Isso me lembrou
a correspondência do historiador Manoel de Oliveira Lima mantida com o sociólogo Gilberto Freyre sobre essa particularidade da história do Brasil: a progressão legal e sem sobressalto de uma
ordem escravocrata para um regime de
trabalho livre.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de
ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de
Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac).
Um Contraponto Baiano
450 págs., R$ 50,00
de B.J. Barickman. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171,
CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/21/2585-2000).
As Camélias do Leblon
e a Abolição da Escravatura
144 págs., R$ 28,00
de Eduardo Silva. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).
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