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VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?
A CONVITE DO MAIS!,
DOIS ESCRITORES, UM
CINEASTA E
UMA HISTORIADORA
FICCIONALIZAM
E DEBATEM SEUS TEMORES
ÍNTIMOS E OBJETIVOS
EXÍLIO
por Milton Hatoum
Dezembro, 1969
M.A.C. decidiu ir a pé até a rodoviária:
comeria um pastel e seguiria para a
W3. Numa tarde assim, seca e ensolarada, dava vontade de caminhar,
mas preferi pegar o ônibus uma hora antes do
combinado: saltaria perto do hotel Nacional,
desceria a avenida contornando as casas geminadas da W3. A cidade ainda era estranha para
mim: espaço demais para um ser humano, a superfície de barro e grama se perdia no horizonte
do cerrado. A Asa Norte estava quase deserta, era
sexta-feira, e só às três da tarde alguns estudantes
saíram dos edifícios mal conservados. Do campus vinham os mais velhos: universitários, professores, funcionários, a turma escaldada. A liderança era invisível, os mais perseguidos não tinham nome: surgiam no momento propício,
discursavam, sumiam.
Valmor não quis ir: medo, só isso. Medo de ser
preso, disse ele.
Zombavam do Valmor, escarneciam do
M.A.C., medroso como um rato, mas agora até o
M.A.C. sairia da toca e quem sabe se na próxima
vez Valmor...
A revolta se irmanava ao medo, às vezes ao
horror, mas a multidão nos protegia e naquela
tarde éramos milhares. Os militares esperaram o
tumulto explodir na W3, depois veio o cerco
quase perfeito: nas extremidades e laterais da
avenida, nos dois Eixos e nos pontos de fuga da
capital. Às cinco ouvimos os discursos relâmpagos, urramos as palavras de ordem, pichamos
paredes e distribuímos panfletos. A dispersão
começou antes de escurecer. Ninguém iria ao
Beirute, um bar visado pela polícia, nem ao Eixo
Rodoviário, uma praça de guerra. No corre-corre saí da W3, passei pelos fundos de lojas e bares,
tentando caminhar sem alarde, assobiando, e o
céu ainda azul era a paisagem possível. Nunca
olhar para trás nem para os lados, nunca se juntar a outros manifestantes, fingir que todos os
outros são estranhos: instruções para evitar gestos suspeitos. Até então nenhum rosto conhecido, e a catedral inacabada e o Teatro Nacional
não estavam tão longe. Ficaria por ali à espera da
noite, anunciada pela torre iluminada.
A dispersão e a correria continuavam, e o mais
prudente era ficar sentado no gramado da 302 ou
da 307 e assistir ao bate-bola das crianças. Amanhã um passeio de bote com Liana no lago Paranoá, domingo a releitura de "Huit-Clos" [de Sartre] para o ensaio da peça. Se viver fosse apenas
isso e se a minha voz (e não a de outro) gritasse
meu próprio nome, duas, três vezes... Assustado,
reconheci a voz de M.A.C., o corpo cambaleando
em minha direção. A rua e a quadra comercial foram cercadas como num pesadelo, tentar fugir
ou reagir seria igualmente desastroso. Depois de
chutes e empurrões, eu e o meu colega rumamos
para o desconhecido. M.A.C. quis saber para onde íamos, uma voz sem rosto ameaçou: calado,
mãos para trás e cabeça entre as pernas.
O trajeto sinuoso, as curvas para despistar o
destino da viatura, manobras que apenas imaginávamos e agora estava acontecendo. Pobre
M.A.C., era o mais retraído da segunda série, misterioso como um bicho esquisito. Tremia ao meu
lado, parecia chorar e continuou a tremer quando saltamos da viatura e escutei sua voz fraca: sou
menor de idade, e logo uma bofetada, a escolta, o
interrogatório. Ainda virou a cabeça, o rosto pedindo socorro...
Não o vi mais na noite longa. Eu também era
menor de idade e escutei gritos de dor no outro
lado de uma porta que nunca foi aberta. Em algum lugar perto de mim, alguém podia estar
morrendo, e essa conjetura dissipou um pouco
do meu medo. Na noite do dia seguinte, me deixaram na estrada Parque Taguatinga-Guará. A
inocência, a ingenuidade e a esperança, todas as
fantasias da juventude tinham sido enterradas.
Na segunda-feira, M.A.C. não foi ao colégio
nem compareceu aos exames. Mais um desaparecido naquele dezembro em que deixei a cidade.
Durante muito tempo a memória dos gritos de
dor trazia de volta o rosto assustado do colega.
Trinta e dois anos depois, na primeira viagem
de volta à capital, encontrei um amigo de 1969 e
perguntei sobre M.A.C.
"Está morando em São Paulo", disse ele. "Talvez seja teu vizinho."
"Pensei que tivesse morrido."
"De alguma forma ele morreu. Sumiu do colégio e da cidade, depois ressuscitou e foi anistiado."
"Exílio", murmurei.
"Delação", corrigiu Carlos Marcelo. "M.A.C.
era um dedo-duro. Entregou muita gente e caiu
fora."
Senti um calafrio, ou alguma coisa que lembrava o medo do passado.
Milton Hatoum é escritor, autor de "Relato de um Certo
Oriente" e "Dois Irmãos" (ambos pela Cia. das Letras).
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