|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
AS SETE FACES DA IRONIA
Um dos principais escritores argentinos hoje, César Aira lança seu primeiro livro no país e diz que a literatura brasileira é a mais rica da América Latina
|
Maurício Santana Dias
da Redação
Aos 53 anos, o escritor argentino César Aira já
publicou cerca de 40 livros, entre romances ("Ema, la Cautiva", "La Liebre"), contos ("El Vestido Rosa", "Cecil Taylor"), ensaios ("Copi", "Alejandra Pizarnik") e, recentemente, o "Diccionario de Autores Latinoamericanos" (Emecé, 2001, 640
págs.). Neste ano, três livros seus foram editados na Espanha, onde Aira foi considerado "o segredo mais bem
guardado da literatura argentina". No entanto não deixa de ser surpreendente que só agora o autor tenha um
de seus livros editado no Brasil. A obra em questão é "A
Trombeta de Vime", um conjunto de 12 narrativas curtas, de gênero indefinível, em que se encontra um pouco de tudo: uma especulação sobre o Mal ("Diário de
um Demônio"); um excurso pela história do cubismo
num contexto improvável; um episódio grotesco do cinema argentino (a malograda filmagem de Sansão); a
história de Odile, "pioneira no uso da secretária eletrônica". Num dos textos, o narrador investe contra as obsessões pelo novo: "O moderno é habitado por uma
grande ingenuidade, é uma corrente de rajadas pueris".
Porém, o que mais surpreende neste livro lançado
1998 não é tanto a diversidade de temas e materiais, mas
a forma como o autor os absorve e ultrapassa, transformando a experiência das quinquilharias "pós-modernas" em figuras estáveis, que nos interrogam. Calibrando uma imaginação proteiforme com uma escritura de
corte clássico e distanciado, Aira parece assumir os disparates do cotidiano para, num raciocínio por absurdo,
chegar a atingir uma realidade que insiste em escapar.
Sua ficção é movida por uma máquina de analogias insólitas, e o resultado, quase sempre desconcertante, faz
pensar num surrealismo cartesiano.
Dele se poderia dizer, grosso modo, o que o crítico espanhol Andrés Amorós escreveu a respeito de Julio
Cortázar: "É um narrador intelectual, com todas as vantagens e os inconvenientes que isso pode implicar. Os
jogos da inteligência o divertem, o apaixonam as incursões no mundo fantástico... que é o nosso mundo, o de
todos os dias, se soubermos vê-lo [...]. Parece evidente
que o narrador domina todos os recursos do ofício de
escrever: a linguagem, a técnica, o jogo de perspectivas,
a estrutura simétrica".
Esquivo, César Aira aceitou conceder
esta entrevista ao Mais! com a condição
de que fosse feita por e-mail ("não gosto
de telefone, me deixa nervoso"). Escrevendo de Buenos Aires, o autor falou de
seu pouco apreço pela ironia e o humor
que dominam a literatura contemporânea, disse que os escritores de hoje estão
sobrevalorizados e confessou que a crise argentina o fez parar de escrever.
As breves narrativas de "A Trombeta de Vime" parecem
paródias de muitos gêneros: a autobiografia, o melodrama, o conto fantástico, o ensaio. A paródia se converteu
na melhor -ou única- forma atual de literatura?
Na realidade, nunca pratiquei deliberadamente a paródia nem sequer tenho muita simpatia por ela. Há
na paródia algo de zombaria, de desprezo, e eu sou
um leitor bastante agradecido aos livros, com os
quais vivi toda a minha vida, para poder zombar deles ou depreciá-los. Tampouco gosto do humor.
Tento escrever a sério. O fato de que se possa pensar
-como habitualmente se pensa- que estou escrevendo brincadeiras é um dos fracassos que mais me
doem. Neste livro tratei de experimentar diferentes
gêneros e formatos, sem intenção de paródia.
Mas talvez a mescla de materiais e o grande domínio da
técnica narrativa, cujos procedimentos são sempre expostos em seus livros, produzam um "efeito de paródia"
ou de humor, ainda que não seja essa a sua intenção. Por
que lhe dói a visão dos leitores e da crítica em geral? Por
que esse rechaço ao humor?
Desconfio do humor porque ele depende excessivamente do efeito que produz. Caso não o produza, se transforma em nada ou em menos que nada; e, mesmo que o produza, se esgota no efeito e então retorna ao nada. Além disso, o humor é perigoso porque é uma saída fácil para não falar a sério. A literatura do
século 20 foi uma permanente escalada do humor e da ironia, a ponto de, hoje, a única literatura que se escreve a sério é a literatura ruim ou a pseudoliteratura. Nós nos deixamos despojar da seriedade, e creio que já é hora de reagir a isso. É claro que eu não saberia como fazê-lo. Sou um produto de todas as ironias das vanguardas -e vejo com melancolia a perspectiva de morrer sem ter falado a sério nem uma só vez.
A psicanálise, tão forte na Argentina, recebe um tratamento humorístico em um dos textos. O conceito de "paranóia", por exemplo, é transformado no anagrama "narapóia" -que seria a paranóia dos psicanalistas...
Repito: não há escárnio nem ironia aí -nem sequer uma crítica. Freud é um dos meus heróis intelectuais, e eu dediquei muitos anos ao seu estudo, com
toda a seriedade. A "narapóia" não é uma invenção minha. Tal como narro nesse texto -que não é uma ficção-, eu a tirei de uma revista que li na minha infância.
Mas, no caso da "narapóia", o mal-entendido ou efeito cômico é quase inevitável.
E o fato de a palavra ser uma lembrança de infância -e não uma "ficção"- não
muda muito as coisas para o leitor, concorda?
Concordo. Mas você também deve reconhecer que a lembrança de um chiste pode ser melancólica, ainda que o chiste tenha sido bom. Na verdade as lembranças sempre são tristes; por isso não me agradam.
Como é seu método de trabalho, sua rotina?
Sou muito lento e escrevo bem pouco. Pela manhã, vou a um dos muitos cafés que há em Buenos Aires e escrevo durante uma hora... Nunca pude fazer mais
de uma página por dia. Mesmo que tenha idéias e vontade de escrever, parece que há uma válvula que se fecha assim que termino essa página, e tenho que
esperar o dia seguinte para continuar. Mas isso tudo se refere a até o ano passado, porque neste ano ainda não escrevi nada.
Como vê a crise atual da Argentina?
Uma velha idéia minha, para justificar minha atividade e torná-la inteligível a mim mesmo, era escrever de modo a deixar um testemunho o mais completo possível de minha vida e de meu tempo, de maneira que, se a Argentina desaparecesse, fosse possível reconstruí-la a partir de meus livros. Neste ano a
crise me afetou tanto que deixei de escrever. E me
pergunto se é porque a Argentina está desaparecendo de fato ou porque está existindo em excesso.
A idéia de reconstruir a Argentina a partir de seus livros parece muito borgiana. Gostaria de substituir a realidade pela imaginação? A quem daria o seu "Aleph"?
Todas as idéias são borgianas. Esse é o perigo de ter
um gênio nas vizinhanças. A mera existência de Borges basta para limitar as ambições de um escritor argentino.
Não, eu não trabalho em favor da imaginação. Creio
que é o contrário. Como tanta gente tímida e inadaptada, sempre preferi a imaginação porque é mais
controlável do que a selvagem realidade. Mas meu
objetivo final é chegar à realidade.
Como é sua relação com a tradição literária argentina,
que, além de Borges, tem Cortázar, Arlt, Macedonio Fernández, Lugones...
Nós, argentinos, sempre fomos leitores muito cosmopolitas. Nos próprios autores que você cita, é preciso buscar as influências muito longe, quase sempre
fora do campo nacional: as de Borges, nos ensaístas
ingleses do século 18; as de Arlt, nos romancistas russos do 19; as de Cortázar, no surrealismo... Sempre li e continuo lendo muito para que possa temer alguma influência definida. Elas se combatem entre si.
Você já disse que todas as suas ficções são tiradas de outros livros. Em "A Trombeta de Vime", quem foram seus principais interlocutores?
Como estou sempre lendo e escrevendo, as atividades vão se misturando de um modo inextrincável. Temo que nesse livro haja muitas inspirações mescladas. Na realidade a leitura é uma magia tão eficaz que pode operar inclusive ao revés do tempo. O título do livro, por exemplo, quando me ocorreu, pareceu-me bastante original. Porém, anos depois, lendo um conto de Alphonse Allais [francês, 1855-1905", encontrei algo muito parecido, para não dizer idêntico: "Le trombon d'osier" (o trombone de vime).
Entre suas atividade, está a de tradutor. A tradução ajuda ou envenena o estilo? Além de ingleses e franceses, de que outras línguas você traduz?
Traduzi ocasionalmente alguns autores italianos e alemães. Leio muito em português, mas nunca me ofereceram traduções desse idioma. É um trabalho
que me agrada, pelo qual eu sinto uma grande gratidão (vivi dele durante toda a minha vida). Mas temo que ele tenha prejudicado o meu estilo. Aos tradutores os editores nos pedem antes de mais nada correção. E foi a tradução que deu à minha prosa essa correção uniforme e monótona, da qual tentei me livrar
sem êxito.
Você já declarou que não se acha um "escritor reconhecível". É possível sê-lo hoje? Quem são escritores reconhecíveis, em sua opinião?
Reconhecíveis são os que passam o "blindfold test". Se a pessoa lê umas linhas de Lezama Lima ou de Borges ou de Guimarães Rosa, os reconhece imediatamente, assim como um aficionado do jazz reconhece John Coltrane ou Charlie Parker assim que ouve as primeiras notas. Basta com essa história de ter uma voz própria. São poucos que o conseguem -e eu não acho que tenha essa voz.
Entre os muitos livros que você escreveu está o "Diccionario de Autores Latinoamericanos". Há escritores brasileiros nele? Quais?
Claro que há autores brasileiros nele. Aliás, creio que a literatura brasileira é a mais rica do continente, seguida pela mexicana e a argentina. E o meu favorito é Machado de Assis, obviamente! Sou bastante convencional em meus gostos. Gosto dos bons: Euclides da Cunha, Raul Pompéia, Cruz e Sousa, Mário de
Andrade, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Fazendo uma exceção à minha cegueira ao
contemporâneo, devo dizer que tenho uma queda por Dalton Trevisan, um grande entre os grandes. No dicionário, me limito a escritores do passado
porque o meu prazer de leitor necessita da atmosfera
histórica de mundos desaparecidos. É algo pessoal,
não pretendo que seja o melhor modo de ler. Nele
cheguei até a primeira metade do século 20. Perdi alguma coisa, mas me ficaram quatro séculos e meio de boa literatura. Acho que, em geral, o presente está
supervalorizado. É uma superstição narcisista achar
que em nossa época culminam e se consumam todas
as épocas. Mas é preciso pensar que cada momento
do passado foi presente enquanto acontecia.
Um dos poucos gêneros literários que você ainda não
exercitou é a poesia. Pensa em escrevê-la algum dia?
Decidi minha vocação em companhia de um amigo de infância, em minha cidade. Ele agora é um famoso poeta, Arturo Carrera. Desde criança nós dividimos a literatura: ele ficou com a poesia; eu, com a prosa. E até agora não invadimos o campo um do outro. Isso faz de mim um meio-escritor, mas me dá o alívio de saber que minha outra metade é independente de mim, vive outra vida e não está sujeita às mesquinhezas de minha psicologia.
Que livros está traduzindo/lendo/escrevendo?
Não escrevo nada. Leio de tudo, todo o dia. Tive uma
proposta de uma editora espanhola de traduzir o
diário de Samuel Pepys [historiador inglês, 1633-1703], e comecei a lê-lo e a ler tudo o que encontro de
sua época: Dryden, Bunyan, Walton, Evelyn, Locke,
Congreve...
O que acha das críticas sobre seus livros? Dizem que você
escreve muito...
Um escritor só escreve enquanto está vivo. E a vida é
muito curta. Depois, passarei muitos séculos, todos
os séculos, sem escrever.
A Trombeta de Vime
128 págs., R$ 28,00
de César Aira. Tradução de Sergio Molina. Editora Iluminuras
(r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 0/xx/11/3068-9433).
Texto Anterior: + sociedade: A quinta estação do medo Próximo Texto: Tramas do espetáculo Índice
|