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+ brasil 503 d.C.
Diário em Dubrovnik
Luiz Costa Lima
Neste período do ano, amanhece
cedo em Dubrovnik, Croácia.
Às seis da manhã, o sol brilha e
aquece. Os pombos arrulham,
os pássaros piam, trinam e riscam o azul
safira do céu, lançando-se em desafios de
mergulhos. Com o tormento do fuso horário e uma noite no avião, deitei-me para logo abrir os olhos. Intransigência do
relógio biológico. Sem força de barganha, tenho de esperar a hora em que o
café da manhã começa a ser servido. Resolvo sair e passear à frente do pequeno e
simpático hotel. Descortino a baía e o
porto de Gruz, sobre o Adriático. Um solícito transeunte me informa que, do outro lado da baía, a antiga aristocracia
croata, até fins do século 19, tinha suas
"villas" e palácios. Distingo-os por sua
diversa arquitetura. Caminhamos um
pouco e ele me aponta uma vetusta construção, hoje Faculdade de Turismo. Ao
voltar, continuava fechada.
Os alunos deviam estar em aulas práticas. Seja o que for que ali estudam, esse é
o lugar ideal: Dubrovnik depende do turismo. Confirma-o a algaravia de línguas
que encontro no café do hotel.
Como neste primeiro dia só tenho
compromissos no fim da tarde, volto ao
meu quarto. As próximas horas hão de
ser inventadas. Os pássaros continuam
sua festa de sons e acrobacias. Enquanto
os mais próximos fazem vôos rasantes
em torno de minha janela, os distantes
formam um estranho solo de assobios
saltitantes. Por saber dos horrores da
guerra recente, culpo-me da paz de que
usufruo. Há apenas dez anos todo o
mundo falava dos conflitos dos Bálcãs.
Depois de uma segunda correção, aprendo que não se lhe deve referir como guerra civil. Mas a sensação de culpa foi ligeira. Do contrário, as horas não teriam
passado tão rápidas.
Sou apresentado aos outros membros
do simpósio e um ônibus nos leva às proximidades do palácio do prefeito, no fim
da grande rua central. O discurso de
boas-vindas de uma autoridade declara,
por meio do tradutor, que ali fomos convidados pelo empenho da cidade em
mostrar ao mundo que, depois da destruição, a vida retoma seu rumo. Conta-nos um pouco do que se dera entre 1991 e
1992. Um conflito antes de etnias e religiões do que de ideologias.
A ex-Iugoslávia, cuja unidade fora mérito de um herói da resistência contra os
nazis, o marechal Josep Tito (1892-1980),
está hoje repartida em cinco repúblicas
(a Croácia, onde estamos, a Iugoslávia
[reduzida à Sérvia e Montenegro", a Eslovênia, a Bósnia-Herzegóvina e a Macedônia). Cerca de 70% dos tetos da cidade
velha foram destruídos.
Pontos simbólicos
Situando seus canhões no alto da colina paralela à cidade e ao mar, o Exército sérvio-montenegrino dera preferência aos pontos simbólicos: o antigo mosteiro que abriga a primeira farmácia da Europa, o palácio
renascentista-veneziano, o hotel que vinha do período austro-húngaro (hotel
Imperial), a construção em 1971 do Inter-University Center (IUC), com suas
bibliotecas e salas de conferência, onde
se realizou o simpósio de que participei,
humildes casas assobradadas, que se
acotovelam em ruas estreitas. Porque
Dubrovnik fora antes considerada patrimônio da humanidade, a Unesco tem
ajudado na sua reconstrução.
As perdas, contudo, sobem a milhões
de dólares e o dinheiro não basta para recuperar a rede hoteleira. A guerra dá lugar ao círculo vicioso: decresce a entrada
de turistas e, sem eles, o ingresso de capital. A reconstrução se torna mais lenta. O
típico turista nem sequer nota. Chega até
a duvidar: "Você não estará se referindo
à Guerra do Golfo ou ao Afeganistão?!".
Ao chegar, no dia seguinte, ao IUC,
procuro informar-me melhor. A bibliotecária me fala das perdas irremediáveis
e me oferece algumas fotos do que fora
arrasado. Eu mesmo fotografo a reconstrução do incendiado hotel Imperial. Já
recupera sua dignidade, mas os jardins
que o circundavam não mais existirão.
No corredor de saída do IUC, está exposto um informe do diretor: o general
responsável pela "razzia" da cidade encontra-se entre os seis criminosos de
guerra, sob julgamento em Haia. Querendo saber mais sobre o período da
guerra, um amigo croata me fala doutros
amigos, de anos passados. Assumiram
outras posições -um, particularmente,
se destacara e chegara a vice-reitor da
Universidade de Zagreb [capital da República da Croácia". Como acrescenta
ainda não haver uma análise exaustiva
sobre o conflito, descarto as publicações
que encontro. Basta-me o testemunho
das pessoas em que confio.
Apenas procuro com os olhos a colina
de onde vieram os tiros. Em seu topo,
junto de uma antena de TV, permanece
intacta a fortaleza construída por Napoleão -até sua invasão, Dubrovnik fora
uma república independente. Notando
minha curiosidade, um taxista propõe
me levar às zonas não-reconstruídas; diz
que as aldeias vizinhas e Sarajevo permanecem em estado lastimável. Atento à
pobreza de meu bolso tropical, prefiro seguir as sessões do simpósio.
Inter-relações
Não haveria lugar mais adequado para discutir o tema que nos reúne: a contingência na história. Mas a rigidez acadêmica pouco aproveita a familiaridade entre tema e lugar. Há mesmo palestrantes que reclamam da
importância, para eles excessiva, dada à contingência. Ou outros que acentuam a
obra de arte ter por alvo domar o contingente. (Por que não acrescentam: que o
doma, ao mesmo tempo em que o produz?! Do contrário, o novo só produziria
epígonos.) A rigidez, porém, não impede que se levante o ponto básico: contingência histórica não é sinônimo de acidente;
é sim o que se opõe ao que se considerara
necessidade histórica. Eu estaria mais
bem preparado se houvesse antes lido o
último tomo da série "Poetik und Hermeneutik", dedicado exatamente a
"Kontingenz" [editado por Gerhart v.
Graevenitz e Odo Marquard com apoio
de Matthias Christen, München. (Poetik
und Hermeneutik; 17)", que circula desde 1998. Mas só poderei recuperar a falha
ao voltar para casa.
É outra coisa que me prende a atenção:
embora o tema tenha assento direto na
teoria da história, foi ele escolhido por
uma associação de literatura comparada.
É surpreendente e auspicioso. Pois indica que os especialistas, entre graus diferentes de sensibilidade, reconhecem que
não podem manter suas compartimentações estreitas. Porque concerne a um
fenômeno histórico, o contingente -o
imprevisível ao que até então se tomava
como necessário- se mostra indispensável também ao especialista em literatura (e arte).
De tal reconhecimento, derivam inter-relações antes desprezadas; além do
mais, é correlato ao desprestígio das visões finalistas da história -os períodos
se sucedendo, como se guiados por um
motor surdo, que se aproveitariam dos
homens e das visões nacionais segmentadas-, fulano que só tem olhos para a
produção cultural de um certo país ou de
certo período ou de um único autor.
Por isso a comunicação de que guardei
mais forte impressão tematizava as relações entre o politólogo Carl Schmitt
(1888-1985), o marxista e místico (ou
místico e marxista) Walter Benjamin
(1892-1940) e o teatrólogo Heiner Müller
(1929-95), a partir do que escreveram sobre "Hamlet". Ao procurar o autor, ele
me diz que foi convidado a participar de
um colóquio em Curitiba sobre Mikhail
Bakhtin. Será um sinal de que nossa pasmaceira intelectual é tão-só aparente?
Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor
de "Intervenções" (Edusp) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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