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Ponto de Fuga
Em surdina
Jorge Coli
especial para a Folha
Limitar-se, reduzir, concentrar-se no pequeno: certos
artistas encontram a felicidade em modos menores.
Propõem -e ensinam- o recolhimento; inventam
jardins isolados de quaisquer agitações. Com nuanças
diminutas, tecem um infinito sugestivo e silencioso. Alcançam, pela poesia delicada e fina, as harmonias mais
plenas. Os "Microcosmos", de Bartók (1881-1945), os
quadros de Chardin, de Vermeer, de Klee, concentram
esses poderes. São criadores que se mantêm a vida toda
fiéis a si mesmos. Suas trajetórias eliminam grandes saltos e guinadas. Tornam e retornam às constantes que
sempre os fascinaram, renovando-as com cuidado, em
passos de gato.
Arthur Luiz Piza pertence a esse naipe. Os relevos que
inventou, de 1958 a 2002, menos conhecidos talvez que
suas gravuras, podem ser vistos na retrospectiva apresentada pela Pinacoteca do Estado, em São Paulo [tel.
0/xx/11/229-9844". Retoma, sem cessar, pequenos fragmentos recortados, de modo artesanal, em retângulos,
quadrados, triângulos, dispondo-os sobre uma superfície que os sustenta. Com eles, organiza aglutinações,
dispersões, ritmos, fluxos, preferindo agrupá-los no
centro, de modo largo ou estreito, criando sempre novas relações com o fundo. As metamorfoses de cores, de
matérias, de evocações se sucedem. Quando o artista
passa a espetar, sobre sisal, unidades metálicas, há uma
esplêndida dilatação de escala. Outras pulsações vibram
no papel graças a incisões que são como vetores. Mas
estas enumerações são toscas. As obras de Piza fogem
das palavras para melhor se oferecerem no silêncio.
Segredo - Como é possível filmar a morte? Não uma representação da morte, uma bala na cabeça, um corpo
apodrecido, uma agonia dramática, mas a morte cotidiana, que se esgueira nos segundos de cada dia, espreitando, para surgir inesperada ou conhecida?
Manoel de Oliveira está com 93 anos. Deve ser o único
diretor de cinema, hoje em atividade, que tenha começado a trabalhar nos tempos do cinema mudo. Domina
a imagem, domina o som, criando descompassos entre
eles, descompassos que se carregam de sentidos. Por
exemplo, mostra sapatos novos, mostra sapatos velhos,
enquanto pessoas conversam, e os sapatos contam a
impossibilidade de voltar atrás.
"Vou para Casa" (2001) é um filme delicioso e simples, que parece passar em cinco minutos. "Vou para
Casa" é um filme implacável, que impõe a consciência
da morte em cada segundo.
Ele começa com uma peça de Ionesco, em que o rei
pergunta: "Por que eu nasci, se não era para sempre?".
O teatro, a literatura, mesmo o cinema podem tratar da
velhice e da morte; Michel Piccoli representa o papel de
um ator idoso, respeitado e reconhecido. Teatro e cinema são hábeis em criar simulacros de juventude: em
"Vou para Casa", a maquiadora, com gestos seguros,
devolve uma aparência jovem ao rosto envelhecido, cena que faz pensar no Visconti de "Morte em Veneza",
de 1971.
Mas Manoel de Oliveira não discorre sobre a morte:
faz a ilusão do cinema dizer que é ilusão, e faz o cinema
ir muito fundo, para além da ilusão.
Costura - É engano pensar que um artista trabalha sobre "questões", que "interroga" vida, morte, sexualidade ou o que se quiser. Isto é domínio do filósofo. O artista faz obras. Por imateriais que sejam, partem sempre
de uma espessura. Alguns mestres sábios ensinaram:
arte não é um meio, é um modo de ordenar. A obra, e
não o artista, cria entendimentos mudos, alusivos, intuitivos. É nela que se encontram, sem conceitos nem
enunciados, pensamento e interrogação.
Penélope - Ainda na Pinacoteca do Estado (SP), uma
exposição consagrada a Vera Martins reúne seus objetos feitos de tecidos, antes desfiados que fiados. Eles se
enrolam, se fazem e se desfazem. Estiram-se, animados,
em tramas largas, deixando visíveis os fios; escorrem
em abandono; aconchegam-se em corolas; determinam
transparências, orifícios ou obstruções. Paira uma calma feminina em tudo isso, um acabamento cuidadoso,
em que o trabalho apaga seus próprios traços. E onde,
também, se incorpora algo de ritual, de solene, de sagrado, escondendo segredos e presságios.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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