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+ cinema
O crítico francês, que acaba de lançar uma enciclopédia do filme pornô, fala
da concorrência da internet e diz que o gênero antecipou a evolução dos costumes
Encenações misóginas do obsceno
Caio Caramico Soares
da Redação
Pode ser verdade que nos filmes pornô o enredo é
o que menos conta. Mas isso não impede que eles
estejam repletos de "história", isto é, das grandes
tendências culturais de sua época. Às vezes eles
até antecipam tais tendências, ao introduzir "subversões" -como as relações homossexuais ou interraciais- que só no futuro gozariam de aceitação social.
Essas são algumas das teses defendidas pelo jornalista e
cinéfilo francês Jacques Zimmer, 67, na entrevista a seguir, concedida por e-mail e telefone da cidade de Ginasservis, perto de Marselha (sul da França).
Ele é o organizador de "Le Cinéma X" (ed. La Musardine, 440 págs., 38,11 euros), ampla antologia sobre o pornô na Europa e nos EUA - incluindo o auge, em meados dos anos 70, e o atual declínio. Para Zimmer, as salas dedicadas a eles estão em via de extinção, o que tem
provocado uma migração da estética pornô e de seus
aficionados rumo ao cinema convencional, vídeo, DVD, a internet e TV.
Qual o futuro do cinema pornô?
Ao menos na França, ele está bem
comprometido. A produção "cinema" (35 mm) desapareceu. A exploração igualmente. Os vídeos são cada
vez mais medíocres, à exceção de alguns "sobreviventes", como Marc
Dorcel, ou alguns jovens raros, como
John B. Root, que com muita dificuldade mantêm
um cinema de qualidade (mesmo se ele é vertido ao
vídeo). As recentes mudanças políticas deflagraram
uma ofensiva da direita para suprimir o pornô da televisão. Por enquanto eles não tiveram êxito, mas a
vigilância será essencial.
No entanto, ao mesmo tempo, os realizadores e realizadoras fizeram progredir a liberdade de tratar esses assuntos no cinema tradicional.
O interesse do público tem diminuído nesses últimos
anos?
O interesse do público evidentemente diminuiu nas
salas de exibição, até porque elas desapareceram na
França, graças a fatores como as restrições legais.
Por exemplo, a sala que passasse filmes pornô era
obrigada a se especializar nesse tipo de filme, o que
economicamente era desestimulante.
Mas os mercados do pornô na televisão e na internet
são importantes, assim como há uma expansão das
compras e da locação de cassetes e de DVD. O problema é que, na ausência de cifras confiáveis, não se
pode quantificar o número de espectadores reais
nesses diferentes registros (ao contrário dos anos 70,
quando se dispunha de números oficiais e precisos
dos espectadores, filme por filme, sala por sala).
Qual tem sido o impacto da Aids? Ela não seria um estímulo ao consumo de filmes pornô, como forma de fuga
aos perigos do sexo real?
A aparição da Aids e a morte de algumas vedetes do
gênero deflagraram uma onda de precauções e de
sexo seguro, com o uso de preservativos nos filmes.
Por outro lado, compreendo o que você diz, e é correto, acerca das alternativas "masturbatórias" que a
Aids estimula para a fuga desses perigos.
Como distinguir erotismo e pornografia?
Essa distinção é o que nós chamamos, em francês, de
"serpente do mar", isto é, um tema que volta sem
cessar. Eu precisaria de páginas e páginas para abordá-lo. Se você quiser, simplificarei em duas fórmulas. A oficial: segundo a lei francesa, saímos do erotismo para a pornografia desde que haja "penetração", isto é, uma cena de copulação não-simulada.
Pessoalmente, faço minha a seguinte fórmula: "A
pornografia é o erotismo dos outros!".
E o "mau gosto"? Como defini-lo?
Permita-me ligar esse problema ao
precedente; parece-me que a definição de mau gosto recobre mais uma
noção moral pessoal do que uma noção estética, e eu acho "de mau gosto"
a representação de práticas sexuais
que não são as minhas, embora sejam
as do vizinho.
Os detratores do pornô dizem que ele tende a expor as mulheres a situações degradantes e a banalizar o sexo.
O problema da misoginia é de fato essencial. Feito
por homens e para homens (o público masculino é
99% do total), o cinema pornográfico reflete, acentuando, o perfil psicológico da sociedade que o produz. Na França, a despeito dos grandes progressos
na legislação e na vida corrente, os costumes continuam ainda largamente misóginos. Portanto é verdade que o cinema pornográfico (e, diga-se de passagem, o cinema em geral) é misógino; como o essencial do que ele mostra é de ordem sexual, a posição
(dizendo sem maldade) da mulher é tanto mais flagrante. No entanto os críticos do cinema pornô em
geral o conhecem muito pouco.
Por exemplo, recentemente vi na TV uma reportagem em que uma jornalista mostrava uma seção de
sex shop repleta de "mulheres submissas", esquecendo que a seção ao lado era consagrada aos "homens submissos". De todo modo, a recente aparição
de realizadoras do pornô fez a coisa evoluir.
Os filmes pornô veiculam que tipo de carga ideológica?
Além da misoginia, é raro que esse cinema veicule
outras manifestações ideológicas "gerais", simplesmente porque ele não se preocupa em lidar com
"grandes problemas". Mas eu diria que o cinema
pornográfico antecipou a evolução dos costumes em
temas como o racismo em geral (ao mostrar uniões
interraciais) e sobre o racismo homossexual (essa
forma de sexualidade esteve presente desde a origem
do cinema pornô, no início do século).
Quais os seus filmes prediletos no gênero?
No meu livro, nós listamos "41 filmes incontornáveis". Dentre eles, constam em minha seleção pessoal: "Derrière la Porte Verte", "Story of Joanna",
"Day Dream", "New Waves Hooker", "La Nuit sans
Fin". Mas como: são quatro americanos, um japonês
e nenhum francês? Tanto pior. É minha escolha!
É possível dizer que o fetiche masculino pelo lesbianismo
significa uma queda do apelo erótico da relação heterossexual no universo dos filmes pornô?
Há incontestavelmente uma extensão do mercado
dos gêneros (embora eles existam desde sempre). É
que o cinema pornô se especializou cada vez mais
para responder à demanda de uma clientela que
compra ou aluga fitas de vídeo cuja difusão é mais ou
menos clandestina e sem nenhum controle estatístico. Assim, é difícil distinguir as grandes tendências
do mercado.
Por que a idéia de fazer uma enciclopédia do pornô?
Depois de ter publicado 23 livros, em geral sobre cinema, em que tratei de realizadores como Orson
Welles, Alfred Hitchcock ou Jean-Pierre Melville, me
pareceu interessante tratar também de um gênero
particularmente desprezado pelos intelectuais e sistematicamente atacado pelos bem-pensantes. Além
disso, foi ocasião para trabalhar com amigos que,
eles também, são críticos que adoram esses clássicos
do cinema, mas que compartilhavam minhas idéias.
Nós trabalhamos, creio, muito seriamente, mas sem
deixar de nos divertir muito.
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