São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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+ sociedade

O autor de "A Colônia de Fausto", que acaba de sair na Alemanha, vê na obra de Goethe as origens das utopias capitalista e comunista e relaciona seu herói a Brasília

UMA HISTÓRIA DAS CATÁSTROFES - Michael Jaeger

Marcus V. Mazzari
especial para a Folha

Numa longa carta que Goethe, cinco dias antes da morte, em março de 1832, dirigia a Wilhelm von Humboldt, a tragédia "Fausto" -elaborada, em suas duas partes, ao longo de seis décadas- é caracterizada como "brincadeiras muito sérias". Antevendo as controvérsias que marcariam a recepção da recém-concluída segunda parte, o velho poeta a reservava para uma publicação póstuma.
O prognóstico se cumpriria à risca: e, se durante o século 19 as disputas exegéticas se travaram mais no terreno filológico, elas não tardaram a adentrar o plano ideológico. Com a ascensão de Hitler, Fausto foi estilizado pela germanística nacional-socialista em figura-símbolo do novo Reich, herói tão genuinamente ariano quanto o Sigfried dos "Nibelungos".
No campo oposto, Georg Lukács concluía em 1940, exilado em Moscou (e, aliás, sob ameaça permanente da polícia secreta de Stálin, a temível Lubjanka), os seus "Estudos sobre o Fausto", que lançaram as bases da interpretação marxista da tragédia. Nessa linha e já saltando para anos mais recentes, Heinz Schlaffer publica em 1981 o notável livro "A Alegoria do Século 19": no "Fausto 2", Goethe teria colocado em cena "os conceitos fundamentais da economia política", estabelecendo-se assim uma fecunda interação com "O Capital", de Marx. E, num estudo publicado em 2003 ("O Que É um Acontecimento Histórico"), o conceituado historiador Alexander Demandt se vale de uma interpretação inovadora dos versos finais do "Fausto 2", o "Chorus Mysticus", para fundamentar a sua defesa de uma "história de eventos", em franca polêmica com a escola francesa dos "Annales".
Outro recente capítulo na filologia fáustica foi aberto pelo germanista Michael Jaeger com o estudo de quase 700 páginas "Fausts Kolonie" (A Colônia de Fausto, ed. Königshausen & Neumann, 49,80 euros, 2004). Trata-se de uma minuciosa análise de perspectiva histórica, tributária em larga medida do pensamento de Karl Löwith (1897-1973), que busca apresentar Fausto como agente arquetípico de uma crise que, para Goethe, teria tomado direção catastrófica com o terror jacobino, durante a Revolução Francesa.
A "fenomenologia crítica da modernidade", que Jaeger diagnostica no "Fausto 2", anteciparia com aguda clarividência momentos cruciais da marcha histórica a partir da revolução de 1830 na França, ajudando a compreender os totalitarismos do século 20 e mesmo a nossa atual realidade do "turbocapitalismo". A "Colônia de Fausto" significa, na visão do intérprete, a supressão radical e violenta de formas de vida lentamente gestadas na tradição clássica e judaico-cristã, sendo exemplar nesse sentido o aniquilamento do casal de idosos Baucis e Philemon, no último ato da tragédia: eloqüente expressão do horror que a história moderna, com o seu crescente número de vítimas, inspirava a Goethe.
A despeito de vários pontos discutíveis, o estudo de Jaeger vem demonstrar mais uma vez a possibilidade inesgotável de dizer algo novo (significativo também para o atual mundo globalizado) mesmo sobre uma obra cuja bibliografia registra, só na Alemanha, mais de 10 mil títulos.
Uma obra "incomensurável", que jamais encontrará interpretação definitiva, como o próprio poeta sugeria a um amigo (e a todos os seus futuros leitores) numa carta escrita em setembro de 1831: "Não espere elucidação; como a história do mundo e do homem, o último problema solucionado sempre desvenda um novo problema a ser solucionado".
 
O que o levou a dar o título "A Colônia de Fausto"?
Se considerarmos a longa história da recepção do "Fausto", perceberemos a predominância, por mais de 150 anos, de uma leitura centrada na idéia da "perfectibilidade": Fausto aparece como figura exemplar, a incansável "aspiração" que o anima é vista como virtude, e, a sua trajetória, como aperfeiçoamento da personalidade, enfim, como progresso e felicidade, ainda que à custa de muitas vítimas.
Mais recentemente, deu-se uma mudança de paradigma: o subtítulo "tragédia" é levado mais a sério, e o "Fausto" passa a ser lido como uma história de catástrofes, sem reconciliação terrena. Acredito que seja possível ir um pouco além e apresentar Fausto como verdadeira figura do "horror", que rompe com todo o legado da tradição para construir na segunda parte da obra um mundo inteiramente novo.
No final da tragédia vemos o mundo de Fausto transformado em gigantesco canteiro de obras, e Goethe coloca na boca do herói citações literais do socialista Saint-Simon, expressão da crença tecnicista sob a divisa do progresso.
Aliás, as relações com a história do Brasil são mais expressivas do que poderia parecer à primeira vista: Brasília poderia ter sido construída por Fausto, faz parte da sua "colônia", da utopia da modernidade, cujo símbolo mais evidente é a arquitetura. Não me surpreenderia se entre as anotações do arquiteto de Brasília se encontrassem pensamentos de inspiração genuinamente fáustica.

O que o "Fausto" tem a dizer aos leitores alemães e estrangeiros no início do século 21? A tragédia de Goethe seria mais atual do que outros textos clássicos?
Hoje reconhecemos claramente que à crise do socialismo vem se associar a do capitalismo. As turbulências dos dois sistemas revelam-se como as duas faces da mesma moeda, mostram a crise da modernidade, do construtivismo megalômano, os resultados críticos da euforia desenvolvimentista, da colonização em escala global. Goethe realizou no "Fausto" uma fenomenologia crítica da modernidade, que nos permite remontar às origens das utopias colonizatórias capitalista e comunista e enxergar claramente o momento histórico de que advieram os dois antagonistas engendrados pela moderna crença na tecnologia e na industrialização.
A criação genial de Goethe consiste numa variação do velho assunto fáustico, que ele configura como caricatura do ideal moderno de progresso e dinamismo. Fausto obriga-se pelo pacto a um movimento incessante, vertiginoso, e, se ele parar por um instante, se conceder a si mesmo um momento de reflexão, terá perdido a aposta e a própria vida. Não cansamos de admirar a exatidão "sismográfica", as qualidades clarividentes do texto goethiano.

O senhor poderia dizer algumas palavras sobre as edições alemãs mais significativas?
Entre as inúmeras edições comentadas do "Fausto" destacam-se duas obras excepcionais: a de Albrecht Schöne, com comentários precisos, em tom sóbrio e elegante, e baseados num texto estabelecido com os mais rigorosos critérios científicos. E há também a edição ainda hoje imprescindível de Erich Trunz, um filólogo que se movimenta familiarmente no gigantesco cosmo da obra goethiana e reconhece de imediato as referências e alusões que atravessam os motivos e pensamentos do poeta.

E quanto às encenações da tragédia, o senhor gostaria de destacar alguma?
No ano de 2000 o importante diretor teatral Peter Stein conseguiu levar ao palco as duas partes da tragédia, sem cortar nem um verso sequer. Foi um espetáculo maravilhoso, e o público que teve a felicidade de vivenciá-lo (ao longo de dois dias) sabia que se tratava de algo único, "sui generis", que dificilmente seria repetido, já que o nosso tempo parece estar inteiramente sob o estigma da famosa exclamação de Fausto: "E mais maldita ainda, a paciência!".


Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na USP e autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (Ateliê).


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