São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004 |
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Espaço de memória
EM ENTREVISTA INÉDITA, LYGIA PAPE FALA DA IMPORTÂNCIA DE PRESERVAR E DIVULGAR COM FIDELIDADE AS OBRAS E AS IDÉIAS DOS ARTISTAS E REVELA UMA PROMESSA QUE FEZ A HÉLIO OITICICA Angélica de Moraes especial para a Folha
A vitalidade criativa de Lygia Pape (1929-2004)
impressiona. Uma das protagonistas de movimentos fundadores de uma tradição estética essencial à história da arte brasileira, essa pioneira
do concretismo e neoconcretismo seguiu inventando
até o final da vida. "Sinto a presença muito forte de Heráclito, porque estou sempre em movimento", disse ela,
referindo-se ao filósofo predileto, o que afirmava que
tudo flui, nada permanece o mesmo. Seu último trabalho, da série "Tteias", será inaugurado no próximo dia 5
de junho, na galeria Graça Brandão, no Porto (Portugal), na primeira exposição individual póstuma da artista, que morreu no dia 3 de maio. Como pregou Heráclito e seguiu Lygia, tudo é devir. A obra de Lygia, mais
do que nunca, afirma e interroga um devir.
Você acredita que a obra de Hélio é bem cuidada pelo Projeto HO? Eu e o [crítico de arte] Mário Pedrosa fomos as primeiras pessoas a pensar em fazer algo pela memória da obra do Hélio, logo após a morte dele. A gente falava em fundação. Aí os irmãos do Hélio diziam que não, que era muito caro e que ninguém tinha dinheiro. Acabou que um grupo de amigos se reuniu e começou a trabalhar. Bom, até 1992 eu participava intensamente do Projeto HO. Mas, depois, quando começaram as viagens da primeira retrospectiva internacional -fui à primeira delas, em Roterdã (Holanda, 1992)-, não acompanhei mais. Nessa época, o Projeto HO ficou mais ou menos desativado, porque toda a obra já estava circulando, e as pessoas foram deixando de freqüentar. Hoje não freqüento mais e não sei como está. Como tem os herdeiros do Hélio, a família, eles são a autoridade máxima para tratar disso. Quando fundamos o projeto, tinha um conselho com pessoas muito experientes no setor de arte. Havia um bom senso que fluía. Na medida em que esse conselho se dissolveu... Quem formava esse conselho? Inicialmente, eram os amigos mais chegados do Hélio, como o Mário Pedrosa. Do grupo neoconcreto, a única pessoa que participou efetivamente do conselho fui eu. Lygia Clark ficou magoada porque não foi chamada para a primeira reunião, depois ganhou o título de presidente, mas continuou magoada e não participava. Tinha também a crítica de arte Esther Emílio Carlos, Luís Otávio Pimentel, o [fotógrafo] Maurício Cirne, o [artista plástico] Antonio Manuel... E havia o Luciano Figueiredo, que se aproximou mais no final da vida do Hélio, quando Hélio voltou de Nova York para morar no Rio. Depois Luciano ficou uma espécie de pessoa de confiança da família. Hoje eu não gosto de reivindicar autoria do Projeto Hélio Oiticica porque, quando deu certo, todo mundo achou que era autor e dono daquilo. Deixa para lá. Cada um acha que foi ele que criou. Depois esse projeto inspirou outros, como o de Leonilson, o de Sergio Camargo... Isso é o que realmente interessa. É uma boa alternativa para garantir a memória da arte brasileira. Sim, porque acontecem horrores, como a destruição de praticamente todos os arquivos da Funarte durante a época do [secretário de Cultura no governo Collor] Ipojuca Pontes. Muitas famílias de artistas não têm noção de que não se trata apenas de propriedade particular: são bens pertencentes à cultura brasileira... E não sabem gerenciar. Quando a Lygia Clark morreu, a família queria jogar fora o arquivo dela. Eles não gostavam daquilo, achavam que não tinha valor nenhum. No fim, felizmente, o arquivo foi para o MAM (Rio), na época em que o Paulo Herkenhoff era o diretor. Ele conseguiu abrir o material à consulta, fez um acervo bom sobre a Lygia Clark. Senão, ia tudo parar no lixo. A família pegava as gavetas e jogava em sacos. Tinha tudo ali dentro, de qualquer maneira. Queriam se livrar dela. Agora virou uma fonte de renda, né? O que você achou da montagem da sala especial de Hélio na bienal "Brasil Século 20", em 1994? Aquela montagem foi um desastre, uma tristeza. Mas você não pode interferir, porque os herdeiros se dizem satisfeitos com aquela orientação. Você pode alertar uma, duas vezes... Depois você pára. Porque eu tinha um compromisso com o Hélio. Lembro que uma vez ele me chamou na casa dele, já em 1979, e disse: "Lygia, nós não vamos fazer um pacto porque pacto é de morte; vamos fazer um acordo: quando um partir, o outro vai ficar responsável pela conceituação da obra". Até hoje fico arrepiada com isso. "Que é isso, Hélio? Que bobagem!", eu disse. "Não, não", disse ele, "de repente é você que vai e eu é que vou tomar conta da sua obra, viu?", disse ele, botando as mãos na cintura. Eu me sentia com obrigação moral, além da amizade, por causa disso. Isso é uma coisa que estou revelando agora, nunca contei para ninguém. Mas, como eu não estou mais lá no projeto, acho que estou liberada para contar essa história. Aí eu tentei fazer o melhor possível, até abrindo mão, por vezes, de meu trabalho pessoal. Porque, naquele momento inicial, era preciso dar muita atenção para não haver certos erros muito perigosos. A obra estava muito dissolvida e ele era uma pessoa muito cuidadosa. Por exemplo: um "Parangolé" não pode ficar pendurado em um cabide, ele tem que ser usado, mas bem usado, viu, dona Catherine David? [uma das curadoras da retrospectiva internacional de Hélio em 1992 e curadora da Documenta de Kassel, em 1997. Em ambas as ocasiões, os "parangolés" ficaram pendurados em cabides].
A exposição do Hélio em Paris, em 1992, no "Jeu de Paume", tinha vários cartazes dizendo para não tocar... Eu tinha sugerido que se fizessem réplicas de algumas coisas, para uso do público. Isso foi feito para a Bienal de São Paulo, inclusive para diversas obras de Lygia Clark. Só que, no caso da Lygia, aquele espaço ficou cheio demais. A Lygia tinha uma noção de espaço maravilhosa. Deve ter se revolvido na tumba! Alguém do grupo neoconcreto deveria ter sido chamado para opinar nessa montagem, porque o conceito de espaço é algo fundamental. O espaço para nós, neoconcretos, é uma coisa orgânica, um corpo vivo que interage com os trabalhos. Essas questões todas, por mais boa vontade que a família tenha, que os herdeiros do artista tenham, é claro que eles não entendem. Só um artista, um colega que teve convivência com o Hélio e conheceu realmente seu trabalho enquanto estava sendo feito e trocou idéias sobre esse processo, é que tem acesso a essas questões. Aquilo a que a gente se propunha como conselho era educar outras pessoas, para permanecer o conceito verdadeiro. Como está essa situação agora? Agora está um sobrinho dele botando ordem naquilo. Parece que agora está indo bem, mas está praticamente partindo do zero, porque as obras estão todas jogadas e houve infiltrações de umidade que danificaram as peças. Não é difícil estudar o legado neoconcretista diante da indigência dos acervos públicos? Sem dúvida. É a maior dificuldade encontrar obras do grupo neoconcreto nos museus. Entre as raras exceções está uma coleção pequena no Museu de Arte Contemporânea (MAC-USP) e outro punhado de coisas na Pinacoteca do Estado. As pessoas querem fazer pesquisa de mestrado ou doutorado e não têm acesso às obras.Têm que bater na porta do colecionador que, se quiser, mostra, se não quiser, não mostra. Há uma peça aqui, outra ali... O projeto original do HO incluía também apoio aos pesquisadores? Claro. Era uma porta de divulgação da obra do Hélio, em que se franqueava a consulta a fotos e textos feitos por ele. Isso é uma coisa de permanência da cultura brasileira. Porque eu não estava lá só pelos pedidos do Hélio de ver a manutenção do conceito da obra nem porque eu era amiga dele. Eu estava lá principalmente por uma preocupação com a cultura brasileira. O ideal é que, a cada artista que morre, pelo menos se junte um grupo para codificar o trabalho, organizar aquilo tudo, fazer um catálogo completo, dar um destino como obra. Porque você não tem onde verificar. Sem falar nos curadores internacionais, que querem escolher obras para exposições. Além disso, não tem publicações... Angélica de Moraes é curadora e crítica de arte, autora de, entre outros livros, "Regina Silveira - Cartografias da Sombra" (Edusp). Texto Anterior: + sociedade: Uma história das catástrofes Próximo Texto: O exotismo nosso de cada dia Índice |
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