São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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O exotismo nosso de cada dia

VALORIZAÇÃO INTERNACIONAL DAS OBRAS DOS TROPICALISTAS E DE HÉLIO OITICICA NÃO ESCONDE VISÃO EUROCÊNTRICA DE CRÍTICOS E CURADORES ESTRANGEIROS A RESPEITO DA ARTE "NÃO-OCIDENTAL'

por Hermano Vianna

Recentemente, as mais importantes exposições internacionais, como a Documenta de Kassel ou a Bienal de Veneza, não têm ficado completas sem um grande contingente de artistas do "resto do mundo", o mundo que fica fora da Europa e dos EUA. É chique. É correto. E muitas vezes é ocasião para descoberta de pensamentos artísticos extremamente originais vindos de regiões do planeta com as quais o Primeiro Mundo -e o resto do mundo por tabela- tem escasso ou nenhum contato. As diferenças são "conectadas" por curadores que devem ter algumas das maiores milhagens aéreas do planeta. Num debate recente, organizado pela revista "Artforum", que continua a ser a publicação de referência principal para a arte contemporânea, esses curadores e alguns artistas que participaram de suas exposições conversaram sobre suas noções politizadas de "globalismo". A exposição "Les Magiciens de la Terre" [Os Mágicos da Terra] aparece no debate sempre criticada, mas reverenciada, como marco inicial de um novo tempo para a arte global. No dossiê que a revista "Art Press" publicou em maio de 1989 sobre essa exposição -o mesmo que classificava Cildo Meireles como "artista não-ocidental"-, havia uma entrevista com o curador Jean-Hubert Martin. Tive imensa dificuldade em acreditar no que estava lendo. Parecia piada, caricatura estilo "Casseta & Planeta" do pensamento colonialista, exibido como se fosse a salvação ou a receita de libertação do mundo colonizado, isto é, o "nosso" mundo. Já a primeira resposta terminava assim (vale a pena citar todas as palavras): "Não encontramos em todos os países aonde fomos objetos que pudessem figurar na exposição. Na América do Sul, notadamente, fora o Brasil, tivemos decepções, pois encontramos artistas situados num sistema idêntico ao sistema da arte ocidental, com galerias, museus etc. E as produções desses artistas nos pareceram dependentes de nossos grandes centros, quando o que procurávamos era uma outra coisa -coisas que pudessem renovar o olhar, renovar o interesse". A entrevistadora lhe pede para explicar melhor o que procurava. A resposta, agora curta, é antológica: "Obras ancoradas em crenças e valores que não sejam aqueles de nossas redes artísticas. Não me interessava mostrar que os artistas da América Latina lêem a "Artforum'".


Hélio Oiticica inventou com radicalidade aquilo que nenhum artista contemporâneo soube inventar, atacando os conceitos centrais, e não os periféricos ou "mágicos"


Recapitulando: Jean-Hubert Martin ficou decepcionado -coitado!- por descobrir que na América do Sul -bem aqui!- existem museus, galerias, e os artistas que lêem "Artforum" não fazem a arte diferente que ele precisava descobrir para saciar o apetite "renovador" de um sistema de arte ocidental cansado de si mesmo. Ele veio para nossos países e encontrou um espelho que refletiu uma imagem apavorante de si mesmo, quando procurava na verdade o que imaginava ser seu oposto: bons -por serem revoltados- selvagens sem museus, galerias e revistas de arte internacionais. Com o dinheiro e o poder que o há tanto tempo moribundo sistema de arte ocidental continua tendo, seria fácil conseguir o que Jean-Hubert Martin quer: aqui, no resto do mundo, estamos acostumados a fazer aquilo que quem tem dinheiro e poder quer que façamos: se para aliviar a culpa e o tédio dos novos senhores curadores é preciso que viremos uma rede de clubes Mediterranée da alteridade e do exotismo artístico e se isso for deixar as platéias das grandes exposições mais felizes, sabemos bem fingir que nunca vimos nenhum número da "Artforum". Podemos até destruir todos os nossos museus e galerias, que não precisam de muito esforço para virem abaixo tal sua precariedade, realizando um sonho futurista que afinal de contas está na base de nossos modernismos. Economizaremos muito com tal teatro: a "Artforum", no Brasil, custa R$ 50!

Turismo cultural
Eu confesso que faço isso de vez em quando, não dói muito: quando amigos estrangeiros, mesmo os mais intelectualmente respeitáveis deles, chegam ao Rio, já tenho um circuito de turismo cultural que todo mundo adora: um pouco de favela (aqui morou Hélio Oiticica...), um pouco de samba "de raiz" (aquele no qual Hélio Oiticica não prestava tanta atenção -ele era amigo sim da garotada da Mangueira que estava acelerando o samba para o horror dos puristas...), um terreiro de candomblé (quanto mais visualmente africano, mais sucesso faz...). Já tentei levar os gringos para os lugares que realmente fazem parte do meu dia-a-dia, mas desisti (descobrindo que minha sensibilidade turística, que me faz ir sempre a supermercados e shopping centers em todo país a que chego, não é algo tão comum assim) e me acostumei com a existência de pelo menos duas cidades onde vivo: aquela da minha vida cotidiana entre brasileiros e aquela outra, que apresento para quem não é daqui.
Mas confesso também, sem querer magoar ninguém, que tem horas que essa ordem de múltiplas personalidades/cidades cansa. Sou "sofisticado" o suficiente para saber muito bem que minha cidade/cultura cotidiana não é mais verdadeira ou autêntica (muitas vezes é realmente o contrário da "autenticidade") do que a cidade que invento para os gringos. Nem sou arrogante para achar que os gringos devem gostar da "minha" cidade e que vão realmente lucrar ao questionar os estereótipos que sempre cultivaram sobre a cultura do Rio. É chato estragar os sonhos de exotismo das outras pessoas, sobretudo quando não se tem algo "melhor" ou "mais interessante" para colocar no lugar.
Porque isso não acontece só durante visitas de estrangeiros. Geralmente, quando o artista brasileiro está fora do Brasil, a situação é parecida. Faz mais sucesso uma imagem pobre ("me live in a very poor country"), sofrida, politicamente selvagem, comprometida com os nossos problemas nacionais, com bastante identidade. Como já escreveu Rem Koolhaas: ""Identidade" é a nova "junk food" para os desalojados, a forragem que a globalização dá para os desprivilegiados...". O artista brasileiro ou qualquer brasileiro (cineastas, pensadores, diretores de ONGs etc.) se sentem um pouco desconfortáveis ao agir assim na frente de outros brasileiros, mas, como somos um povo educado, fingimos não notar o que está acontecendo, para não causar nenhum mal-estar diplomático. Parece que inventamos um novo estilo de meninos de rua planetários, que fingem ser mais pobres e mais burros para ganhar mais esmolas, prêmios em festivais e viagens de graça.
Ser inteligente e denunciar o jogo não é de bom tom. Para que estragar as festas dos outros, os que podem nos convidar para suas festas? O que Jean-Hubert Martin estava propondo em seu "Os Mágicos da Terra" era na verdade uma divisão de trabalho: nós produzimos coisas "diferentes"; ele identifica o que fazemos como arte, interpreta, cataloga, teoriza, faz a festa e paga a conta. Para que reclamar, sobretudo quando a passagem é de classe executiva?
Sei que "Os Mágicos da Terra" tinha uma "ideologia" bem diferente daquelas que produziram as Documentas 10 e 11 ou a última Bienal de Veneza ou mesmo a Bienal de Johannesburgo (a única que vi, mesmo com o taxista não querendo me levar para o local da exposição no centro da cidade -eu tive que usar meu charme bandido brasileiro para convencê-lo: "Eu moro no Rio de Janeiro, a cidade mais violenta do mundo!"). Mas não deixa de ser interessante constatar que de alguma forma passamos a viver numa realidade que deixaria Jean-Hubert Martin menos decepcionado: com a demanda cada vez maior de arte brasileira no circuito internacional estamos também criando uma classe de artistas que passou a ter uma relação cada vez mais virtual com as galerias e museus daqui. É muito mais fácil acompanhar seus trabalhos indo às grandes exposições internacionais, que assumiram o papel de principais mediadores entre a nossa arte e o mundo, inclusive o nosso mundo. O público brasileiro que não pode viajar parece que vai ter cada vez menos contato com a arte contemporânea brasileira. Ou vai ter cada vez mais que consumir a arte brasileira que as grandes exposições internacionais elegeram como aquilo que de mais importante acontece no Brasil ou decidiram que é o que deve ser feito no Brasil. Nesse sentido a globalização seria absolutamente vitoriosa. Esse quadro não foi criado ontem. Toda a história do modernismo brasileiro pode ser pensada também como essa tensão constante entre o fazer sucesso fora -com produção daquilo que Oswald de Andrade já chamava de macumba para turista- e a vontade de independência diante dessas exigências de identidade brasileira, mesmo contestatórias, mais óbvias. Muitos dos momentos que valorizo como os mais importantes de nossa recente história cultural sacudiram os fundamentos dessa prisão da diferença. Caetano Veloso, numa de suas primeiras entrevistas tropicalistas, lançou seu grito de liberdade: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas. Ora, sou baiano, mas a Bahia não é só folclore. E Salvador é uma cidade grande. Lá não tem apenas acarajé, mas também lanchonetes e "hot dogs", como em todas as cidades grandes" (e Caetano sabia ver a beleza no "hot dog" de Salvador, assim como Andy Warhol sabia ver a beleza no McDonald's de Florença, de Estocolmo ou de Tóquio). Pensando assim, ele colocou guitarras elétricas na sua música, sendo por isso vaiado por quem -brasileiros e estrangeiros- achava que a verdadeira música brasileira deveria ficar para sempre "unplugged" (da mesma maneira como nossos artistas não deveriam ler "Artforum" ou que o cinema brasileiro deve ser sempre coitadinho etc).

Impasses do pensamento
É para mim uma alegria libertadora ver os discos tropicalistas hoje serem tratados por críticos norte-americanos como discos de rock, e não de "world music". Como também fico imensamente feliz, talvez mais bem compreendido, quando vejo Hélio Oiticica (para horror de Jean-Hubert Martin: também na capa da "Artforum"!) começar a ser devidamente tratado como um grande artista moderno, que não fez uma arte exótica, valorizada por ser exótica, mas sim que esteve até o fim de sua vida conversando com o modernismo de Mondrian, que via na arquitetura das favelas não uma "cor local", mas sim soluções para os impasses do pensamento construtivista, e que conseguiu fazer descobertas que complexificam o panorama da arte moderna mundial como um todo, e não como um apêndice pitoresco produzido na terra do samba, no mundo não-ocidental.
Oiticica inventou com radicalidade aquilo que nenhum artista contemporâneo soube inventar, atacando os conceitos centrais, e não os periféricos ou "mágicos" (os destinados a ser cultivados pela "mentalidade pré-lógica" da periferia, enquanto o centro teria a exclusividade do trabalho de peso, aquilo que toca a máquina do mundo para frente, para os lados ou para trás).
São brechas, pequenas portas que se abrem para uma relação mais igualitária entre diferentes culturas do mundo e suas modernidades paralelas. Quem sabe um dia eu possa até agradar os amigos gringos com meu "tour" não-exótico pelo Rio? Tudo bem, eles já gostam de baile funk... Portanto só tenho a agradecer a Jean-Hubert Martin por ter me deixado com tanta raiva, mas ter -ao mesmo tempo- pioneiramente tornado possível este debate todo.

Hermano Vianna é antropólogo, autor de "O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do Samba" (ed. Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na série "Brasil 505 d.C.", do Mais!.


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