São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004

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+ brasil 505 d.C.

Mal-entendidos e sensibilidade exagerada prejudicaram recepção de "A Paixão de Cristo"

Purificação pelo sangue

José Arthur Giannotti

Alimentava os maiores preconceitos contra "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson. Não estava disposto a agüentar mais de duas horas de pancadaria -é assim que alguns amigos o classificam-, como se uma enxurrada de violência pudesse compensar a tradição cinematográfica que faz de Cristo um cromo colorido. Mas noutro dia, depois de ler um artigo de Roberto DaMatta elogiando o comprometimento de Gibson com sua causa religiosa, tomei coragem e fui assisti-lo. Não é que tenha gostado do filme e saído me perguntando a razão de tantos mal-entendidos. Em particular me surpreenderam o estranhamento da violência e a acusação de que seria anti-semita. Convém refletir sobre esses dois pontos. A banalização da violência é fato cotidiano; basta prestar atenção nos trailers anunciando os próximos filmes para que se vejam lutas de vida e morte entre semideuses poderosos, pessoas estourando, cabeças decepadas, cidades dizimadas e outras coisas mais. As crianças, para atingirem esse nível de insensibilidade, já são treinadas desde cedo por videogames para superar com um simples clique qualquer obstáculo e liquidar os mais potentes adversários. Isso para não comentar as cruzadas daqueles chefes de Estado que imaginam poder, numa guerra limpa, sem perda de seus próprios soldados, dizimar populações civis com o auxílio da melhor tecnologia. A luta entre o bem e o mal se transforma assim num jogo radical de aniquilamento do outro, embora, no fim da história, este se infiltre nos poros do universo como promessa de retorno no próximo capítulo. Observe-se que se trata, no limite, de uma espécie de jogo entre amigos e adversários totalmente estéril, em que a vitória de um sobre o outro não traz nenhum ganho, nenhum progresso, assim como não cobra outro sacrifício além do preço pago pela entrada no cinema ou pela conta da internet. Em resumo, toda dimensão religiosa e moral do conflito é chapada num jogo político, o grupo do bem contra o grupo do mal, radicalizado, porém, no imaginário, por conseguinte monótono e reiterativo.

O sacrifício
Como transpassar essa violência banalizada para ressuscitar o sentido religioso do sacrifício? Sabemos que não há como escapar da violência praticada contra a natureza -mesmo sendo estritamente vegetarianos, continuaríamos a consumir sementes que são fontes de vida-, por isso as sociedades baseadas na troca estabeleceram instituições compensatórias capazes de manter o equilíbrio entre a natureza, os seres humanos e os deuses. No plano mais elementar o sacrifício não é uma delas? Obviamente, numa sociedade de massa e de consumo, o sacrifício tende a se dissipar numa espécie de deglutição do outro, que reaparece simplesmente como outro a ser de novo devorado, num processo em que a violência imaginada sem limites torna aparentemente irrelevante a violência real.
Nesse contexto, nada mais natural que os fundamentos do catolicismo estarem de novo ameaçados. O sentido da missa, do sacrifício do Filho de Deus, cuja carne e cujo sangue são misticamente comidos, já tinha sido reformulado pela Reforma protestante, que nega a transubstanciação e transforma o ritual no símbolo da universalização da sociabilidade mística. Numa sociedade de massa e de consumo, obviamente o consumo de Deus haverá de ser repensado.
Isso se evidencia principalmente nos países periféricos, onde o consumo é mais virtual do que real, onde o catolicismo sofre então a concorrência das religiões pentecostais, que tanto substituem o caráter sacrifical da missa pela comunhão dos fiéis mediante o ato de consumo do pão e da água na categoria de produtos divinos. Além do mais ganha importância a luta do bem contra o mal, este, porém, apresentado sob a forma de um diabo que, embora sempre saindo perdendo, tem forças para exercer contínua tentação. Sob esse aspecto, configura uma exterioridade absoluta, perigosa, mas nunca vencida, de sorte que o crente se transforma num eterno pagador. A luta política imaginária reforça o papel mediador da igreja -com benefícios financeiros evidentes-, mas substituindo a missa sacrifical por um comício de crentes embriagados no consumo de seus próprios pecados. Tendo em vista esse pano de fundo, a estratégia do católico conservador Mel Gibson não se torna mais clara? Pretendendo evidenciar o formidável efeito transformador e criativo do sacrifício de Jesus, necessita mostrar como, graças a um sofrimento máximo, total negação de sua natureza física, vem estabelecer entre os homens nova forma de comunidade. Lembremos que o judaísmo, de maneira inédita nas religiões do Mediterrâneo, cruza o sacrifício com a remissão de uma falta original. Representação inconcebível, por exemplo, para um grego, que não se pensava vindo ao mundo maculado nem imaginava que a sobrevivência depois da morte, sua residência no Hades, traria qualquer espécie de benefício. Se nada é melhor do que a vida, a morte sempre configura uma perda. Não é à toa que Nietzsche, na sua radical defesa da vida, combate o cristianismo voltando-se para os gregos pré-socráticos. Lembremos, ainda, que Jeová pune Adão e Eva por terem comido da árvore do bem e do mal, de sorte que os primeiros humanos teriam descoberto a duras penas o exercício de uma bivalência que até então fora privilégio de Deus. Uma desobediência os traz para o plano da moral, e assim eles se enxergam nus, partidos pelo sexo, por conseguinte capazes de se conhecer mutuamente pela carne e de se reconhecer como servos de Deus. Expulsos do Paraíso, devem pagar por viverem moralmente, o homem se relando no trabalho e a mulher sofrendo as dores do parto, ambos tentando, contudo, recuperar aquela antiga imediação com Deus à medida que viriam cumprir a sua maldição. Abraão diminui esse abismo ao lançar a primeira ponte da aliança entre Jeová e seu povo, sacrificando o prepúcio de todos os seus descendentes. Depois de se enriquecer prostituindo a mulher no Egito, volta a provar sua fidelidade a Jeová, predispondo-se a imolar seu primogênito, Isaac, gerado, aliás, pela graça divina, pois o filho lhe nasce aos cem anos de idade. Note-se que somente lhe é permitido substituir Isaac pelo cordeiro porque demonstra temor incondicional ao ciumento Deus dos exércitos, amante do povo eleito, mas indiferente à sorte do resto da humanidade. O filme de Mel Gibson focaliza a renovação da aliança, substituindo o temor pelo amor, posto que entrega seu próprio Filho ao ritual de compensação. Que Deus passe a ser visto se dividindo em Pai e Filho e reposto como Espírito Santo, de tal modo que pela graça salve os homens e instale o Reino dos Fins, é elaboração posterior, devida sobretudo ao apóstolo Paulo. Mas a doutrina do amor universal já não ensina um novo tipo de sociabilidade? Mel Gibson toma o mito em seu estado nascente para ressaltar nele sua enorme potência moral. Convém lembrar que, desse ponto de vista, pouco importam os pormenores da vida real de Jesus e o modo pelo qual sua figura religiosa cimenta atividades de outros profetas messiânicos que viveram nesse período. Configurada a história sagrada, ela alimenta, por 2.000 anos, a ação moral dos humanos que se crêem no dever de lidar com todas as suas faltas tendo em vista a morte e a ressurreição do cordeiro de Deus, responsável por tirar os pecados do mundo. Como vem a ser possível pensar uma remissão total dos pecados? Introduzindo no sacrifício um movimento totalizante. Jesus se proclama Filho de Deus, união do infinito e do finito, prega suas idéias inclusive no templo para ressaltar sua filiação ao judaísmo, mas somente ao aceitar a supressão violenta de sua finitude natural, mas recomposta pela ressurreição depois do aniquilamento da flagelação e da morte, é que poderá fazer valer uma nova forma de aliança. O diabo o tenta, mostrando-lhe o tamanho do martírio, mas Jesus, depois de hesitar como qualquer ser humano, se submete à vontade do Pai, não por temor, mas por amor. Chama para si um sofrimento que vem a ser sacrifical porque leva ao limite a destruição da própria carne, suprimindo assim o primeiro passo do pecado. Antes da Paixão, já dera aos discípulos o privilégio, a ser reiterado para sempre, de receber sua carne e seu sangue misticamente transformados. A reiteração simbólica do sacrifício real haveria então de unir os fiéis numa nova comunidade, preparação de outra na qual viveriam depois de ressuscitados. Nunca o judaísmo admitiria essa dialética amorosa, em que a singularidade humana é reintegrada ao movimento da substância de Deus. Não pode admitir que haja meios de superar nossa finitude, como aliás exemplifica a excomunhão de Espinosa muitos séculos depois. Por isso a mediação do templo não pode ser comparada à mediação da igreja, mesmo depois de ser destruído por Tito no ano 70 -o que obviamente obriga a uma reinterpretação do próprio judaísmo, já que a mediação passa assim para as sinagogas, anteriormente apenas lugar de reunião. Para o judeu a comunidade é sempre real, por conseguinte desenha o lugar do próprio e do outro. Não é por isso que não faz proselitismo? Em contrapartida, a igreja cristã, se tem Pedro como elo ligando o céu e a terra, também se afirma sempre que duas ou três pessoas se reúnem em nome de Jesus (Mateus, 18, 18). Daí sua tendência a generalizar-se, a ser católica, por conseguinte trazendo em si a superação da comunidade de fato, já que em potência inclui todos os que um dia forem salvos. Ao reino humano é contraposto o reino dos céus, uma comunidade humana a uma comunidade daqueles que encontram nova forma de individualidade, pois cada um passa a encontrar em Jesus o padrão de sua própria identidade. Se para ambas as religiões o homem é criado à imagem e à semelhança de Deus, somente o cristão, na medida em que crê no Filho de Deus, toma o próprio Deus como mediador de sua alteridade.

Esmagando a serpente
Vale lembrar que essa sociabilidade universal, essa "philia" reinterpretada de modo a abolir a distinção política entre eu e o outro na base da diversidade de fins, isto é, de interesses, só pôde ser completamente aceita pelos primeiros judeus cristãos depois de o apóstolo Paulo equiparar a circuncisão da carne com a circuncisão espiritual e moral provocada pela fé; desse modo abole inteiramente a necessidade física do primeiro sacrifício. Não é à toa que Mel Gibson mostra Jesus esmagando com o pé a serpente amaldiçoada porque foi o estímulo ao pecado.
Depois de recuperar a coragem para enfrentar seu martírio, Jesus nega qualquer pacto possível com o diabo, qualquer negociação entre o bem e o mal, por conseguinte qualquer política humana efetiva. Não é por isso que o diabo explode no final do filme? Na nova forma de sociabilidade, como se dirá mais tarde valendo no reino dos fins, os indivíduos se vêem inteiramente determinados pela afirmação do efeito remissivo de Cristo. É sabido que o modo pelo qual essa afirmação é interpretada varia na história do cristianismo, mas a Mel Gibson importa apenas como o reino de Deus escapa das vicissitudes da política humana e se integra numa igreja universal.
A essa política da catolicidade se contrapõe desde logo a política efetiva de Pôncio Pilatos, cuja caracterização me parece muito feliz. Sabendo que a cisão do povo judeu era irremediável, que sua decisão implicaria apenas escolher o inimigo, fossem os judeus cristãos, salvando Jesus, fossem os fariseus e a teocracia do templo, o condenando, não lhe resta outra saída do que lavar as mãos. Mas com esse ato reconhece a perda de sua legitimidade de julgar, pois não se mostrara capaz de discernir na prática o verdadeiro do falso, fundamento da legitimidade política. Jesus ainda o provoca ao afirmar que sua autoridade provém de um poder mais alto do que Roma. Mas essa impotência judicativa não retira sua culpa, pois, não cabendo à igreja a execução do criminoso, cede-lhe o braço armado, inaugurando uma prática que se repete até a Inquisição.
Não fiz mais do que tentar refinar uma lição de catecismo, tal como aprendia no meu velho colégio do Estado. Admira que essas informações tenham saído do circuito, pois, se fossem ainda de uso corrente, não creio que o filme de Mel Gibson teria provocado tantos mal-entendidos. No que respeita ao anti-semitismo, essa acusação apenas me parece indicar uma sensibilidade exagerada diante de qualquer evento lembrando a fragilidade do consenso político. É a teocracia do templo que se responsabiliza pela morte de um inocente, mas até um de seus membros denuncia o processo como uma farsa. E que uma multidão possa um dia receber gloriosamente o messias para, uma semana depois, precipitar sua morte, não é, infelizmente, privilégio de qualquer povo.


José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C.", do Mais!.


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