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+ brasil 505 d.C.
Mal-entendidos e sensibilidade exagerada prejudicaram recepção de "A Paixão de Cristo"
Purificação pelo sangue
José Arthur Giannotti
Alimentava os maiores preconceitos contra "A Paixão de Cristo",
de Mel Gibson. Não estava disposto a agüentar mais de duas
horas de pancadaria -é assim que alguns amigos o classificam-, como se
uma enxurrada de violência pudesse
compensar a tradição cinematográfica
que faz de Cristo um cromo colorido.
Mas noutro dia, depois de ler um artigo
de Roberto DaMatta elogiando o comprometimento de Gibson com sua causa
religiosa, tomei coragem e fui assisti-lo.
Não é que tenha gostado do filme e saído me perguntando a razão de tantos
mal-entendidos. Em particular me surpreenderam o estranhamento da violência e a acusação de que seria anti-semita.
Convém refletir sobre esses dois pontos.
A banalização da violência é fato cotidiano; basta prestar atenção nos trailers
anunciando os próximos filmes para que
se vejam lutas de vida e morte entre semideuses poderosos, pessoas estourando, cabeças decepadas, cidades dizimadas e outras coisas mais. As crianças, para atingirem esse nível de insensibilidade, já são treinadas desde cedo por videogames para superar com um simples
clique qualquer obstáculo e liquidar os
mais potentes adversários. Isso para não
comentar as cruzadas daqueles chefes de
Estado que imaginam poder, numa
guerra limpa, sem perda de seus próprios soldados, dizimar populações civis
com o auxílio da melhor tecnologia.
A luta entre o bem e o mal se transforma assim num jogo radical de aniquilamento do outro, embora, no fim da história, este se infiltre nos poros do universo como promessa de retorno no próximo capítulo. Observe-se que se trata, no
limite, de uma espécie de jogo entre amigos e adversários totalmente estéril, em
que a vitória de um sobre o outro não
traz nenhum ganho, nenhum progresso,
assim como não cobra outro sacrifício
além do preço pago pela entrada no cinema ou pela conta da internet. Em resumo, toda dimensão religiosa e moral do
conflito é chapada num jogo político, o
grupo do bem contra o grupo do mal, radicalizado, porém, no imaginário, por
conseguinte monótono e reiterativo.
O sacrifício
Como transpassar essa
violência banalizada para ressuscitar o
sentido religioso do sacrifício? Sabemos
que não há como escapar da violência
praticada contra a natureza -mesmo
sendo estritamente vegetarianos, continuaríamos a consumir sementes que são
fontes de vida-, por isso as sociedades
baseadas na troca estabeleceram instituições compensatórias capazes de manter
o equilíbrio entre a natureza, os seres humanos e os deuses. No plano mais elementar o sacrifício não é uma delas? Obviamente, numa sociedade de massa e de
consumo, o sacrifício tende a se dissipar
numa espécie de deglutição do outro,
que reaparece simplesmente como outro
a ser de novo devorado, num processo
em que a violência imaginada sem limites torna aparentemente irrelevante a
violência real.
Nesse contexto, nada mais natural que
os fundamentos do catolicismo estarem
de novo ameaçados. O sentido da missa,
do sacrifício do Filho de Deus, cuja carne
e cujo sangue são misticamente comidos, já tinha sido reformulado pela Reforma protestante, que nega a transubstanciação e transforma o ritual no símbolo da universalização da sociabilidade
mística. Numa sociedade de massa e de
consumo, obviamente o consumo de
Deus haverá de ser repensado.
Isso se evidencia principalmente nos
países periféricos, onde o consumo é
mais virtual do que real, onde o catolicismo sofre então a concorrência das religiões pentecostais, que tanto substituem
o caráter sacrifical da missa pela comunhão dos fiéis mediante o ato de consumo do pão e da água na categoria de produtos divinos. Além do mais ganha importância a luta do bem contra o mal, este, porém, apresentado sob a forma de
um diabo que, embora sempre saindo
perdendo, tem forças para exercer
contínua tentação. Sob esse aspecto,
configura uma exterioridade absoluta,
perigosa, mas nunca vencida, de sorte
que o crente se transforma num eterno
pagador. A luta política imaginária reforça o papel mediador da igreja -com benefícios financeiros evidentes-, mas
substituindo a missa sacrifical por um
comício de crentes embriagados no consumo de seus próprios pecados.
Tendo em vista esse pano de fundo, a
estratégia do católico conservador Mel
Gibson não se torna mais clara? Pretendendo evidenciar o formidável efeito
transformador e criativo do sacrifício de
Jesus, necessita mostrar como, graças a
um sofrimento máximo, total negação
de sua natureza física, vem estabelecer
entre os homens nova forma de comunidade. Lembremos que o judaísmo, de
maneira inédita nas religiões do Mediterrâneo, cruza o sacrifício com a remissão de uma falta original. Representação
inconcebível, por exemplo, para um grego, que não se pensava vindo ao mundo
maculado nem imaginava que a sobrevivência depois da morte, sua residência
no Hades, traria qualquer espécie de benefício. Se nada é melhor do que a vida, a
morte sempre configura uma perda. Não
é à toa que Nietzsche, na sua radical defesa da vida, combate o cristianismo voltando-se para os gregos pré-socráticos.
Lembremos, ainda, que Jeová pune
Adão e Eva por terem comido da árvore
do bem e do mal, de sorte que os primeiros humanos teriam descoberto a duras
penas o exercício de uma bivalência que
até então fora privilégio de Deus. Uma
desobediência os traz para o plano da
moral, e assim eles se enxergam nus, partidos pelo sexo, por conseguinte capazes
de se conhecer mutuamente pela carne e
de se reconhecer como servos de Deus.
Expulsos do Paraíso, devem pagar por
viverem moralmente, o homem se relando no trabalho e a mulher sofrendo as
dores do parto, ambos tentando, contudo, recuperar aquela antiga imediação
com Deus à medida que viriam cumprir
a sua maldição. Abraão diminui esse
abismo ao lançar a primeira ponte da
aliança entre Jeová e seu povo, sacrificando o prepúcio de todos os seus descendentes. Depois de se enriquecer prostituindo a mulher no Egito, volta a provar sua fidelidade a Jeová, predispondo-se a imolar seu primogênito, Isaac, gerado, aliás, pela graça divina, pois o filho
lhe nasce aos cem anos de idade.
Note-se que somente lhe é permitido
substituir Isaac pelo cordeiro porque demonstra temor incondicional ao ciumento Deus dos exércitos, amante do
povo eleito, mas indiferente à sorte do
resto da humanidade.
O filme de Mel Gibson focaliza a renovação da aliança, substituindo o temor
pelo amor, posto que entrega seu próprio Filho ao ritual de compensação.
Que Deus passe a ser visto se dividindo
em Pai e Filho e reposto como Espírito
Santo, de tal modo que pela graça salve
os homens e instale o Reino dos Fins, é
elaboração posterior, devida sobretudo
ao apóstolo Paulo. Mas a doutrina do
amor universal já não ensina um novo tipo de sociabilidade? Mel Gibson toma o
mito em seu estado nascente para ressaltar nele sua enorme potência moral.
Convém lembrar que, desse ponto de
vista, pouco importam os pormenores
da vida real de Jesus e o modo pelo qual
sua figura religiosa cimenta atividades de
outros profetas messiânicos que viveram
nesse período. Configurada a história sagrada, ela alimenta, por 2.000 anos, a
ação moral dos humanos que se crêem
no dever de lidar com todas as suas faltas
tendo em vista a morte e a ressurreição
do cordeiro de Deus, responsável por tirar os pecados do mundo.
Como vem a ser possível pensar uma
remissão total dos pecados? Introduzindo no sacrifício um movimento totalizante. Jesus se proclama Filho de Deus,
união do infinito e do finito, prega suas
idéias inclusive no templo para ressaltar
sua filiação ao judaísmo, mas somente
ao aceitar a supressão violenta de sua finitude natural, mas recomposta pela ressurreição depois do aniquilamento da
flagelação e da morte, é que poderá fazer
valer uma nova forma de aliança. O diabo o tenta, mostrando-lhe o tamanho do
martírio, mas Jesus, depois de hesitar como qualquer ser humano, se submete à
vontade do Pai, não por temor, mas por
amor. Chama para si um sofrimento que
vem a ser sacrifical porque leva ao limite
a destruição da própria carne, suprimindo assim o primeiro passo do pecado.
Antes da Paixão, já dera aos discípulos
o privilégio, a ser reiterado para sempre,
de receber sua carne e seu sangue misticamente transformados. A reiteração
simbólica do sacrifício real haveria então
de unir os fiéis numa nova comunidade,
preparação de outra na qual viveriam
depois de ressuscitados.
Nunca o judaísmo admitiria essa dialética amorosa, em que a singularidade
humana é reintegrada ao movimento da
substância de Deus. Não pode admitir
que haja meios de superar nossa finitude, como aliás exemplifica a excomunhão de Espinosa muitos séculos depois.
Por isso a mediação do templo não pode
ser comparada à mediação da igreja,
mesmo depois de ser destruído por Tito
no ano 70 -o que obviamente obriga a
uma reinterpretação do próprio judaísmo, já que a mediação passa assim para
as sinagogas, anteriormente apenas lugar de reunião. Para o judeu a comunidade é sempre real, por conseguinte desenha o lugar do próprio e do outro. Não
é por isso que não faz proselitismo?
Em contrapartida, a igreja cristã, se
tem Pedro como elo ligando o céu e a terra, também se afirma sempre que duas
ou três pessoas se reúnem em nome de
Jesus (Mateus, 18, 18). Daí sua tendência
a generalizar-se, a ser católica, por conseguinte trazendo em si a superação da comunidade de fato, já que em potência inclui todos os que um dia forem salvos.
Ao reino humano é contraposto o reino
dos céus, uma comunidade humana a
uma comunidade daqueles que encontram nova forma de individualidade,
pois cada um passa a encontrar em Jesus
o padrão de sua própria identidade. Se
para ambas as religiões o homem é criado à imagem e à semelhança de Deus, somente o cristão, na medida em que crê
no Filho de Deus, toma o próprio Deus
como mediador de sua alteridade.
Esmagando a serpente
Vale lembrar que essa sociabilidade universal, essa "philia" reinterpretada de modo a
abolir a distinção política entre eu e o outro na base da diversidade de fins, isto é,
de interesses, só pôde ser completamente aceita pelos primeiros judeus cristãos
depois de o apóstolo Paulo equiparar a
circuncisão da carne com a circuncisão
espiritual e moral provocada pela fé; desse modo abole inteiramente a necessidade física do primeiro sacrifício. Não é à
toa que Mel Gibson mostra Jesus esmagando com o pé a serpente amaldiçoada
porque foi o estímulo ao pecado.
Depois de recuperar a coragem para
enfrentar seu martírio, Jesus nega qualquer pacto possível com o diabo, qualquer negociação entre o bem e o mal, por
conseguinte qualquer política humana
efetiva. Não é por isso que o diabo explode no final do filme? Na nova forma de
sociabilidade, como se dirá mais tarde
valendo no reino dos fins, os indivíduos
se vêem inteiramente determinados pela
afirmação do efeito remissivo de Cristo.
É sabido que o modo pelo qual essa afirmação é interpretada varia na história do
cristianismo, mas a Mel Gibson importa
apenas como o reino de Deus escapa das
vicissitudes da política humana e se integra numa igreja universal.
A essa política da catolicidade se contrapõe desde logo a política efetiva de
Pôncio Pilatos, cuja caracterização me
parece muito feliz. Sabendo que a cisão
do povo judeu era irremediável, que sua
decisão implicaria apenas escolher o inimigo, fossem os judeus cristãos, salvando Jesus, fossem os fariseus e a teocracia
do templo, o condenando, não lhe resta
outra saída do que lavar as mãos. Mas
com esse ato reconhece a perda de sua legitimidade de julgar, pois não se mostrara capaz de discernir na prática o verdadeiro do falso, fundamento da legitimidade política. Jesus ainda o provoca ao
afirmar que sua autoridade provém de
um poder mais alto do que Roma. Mas
essa impotência judicativa não retira sua
culpa, pois, não cabendo à igreja a execução do criminoso, cede-lhe o braço armado, inaugurando uma prática que se
repete até a Inquisição.
Não fiz mais do que tentar refinar uma
lição de catecismo, tal como aprendia no
meu velho colégio do Estado. Admira
que essas informações tenham saído do
circuito, pois, se fossem ainda de uso
corrente, não creio que o filme de Mel
Gibson teria provocado tantos mal-entendidos. No que respeita ao anti-semitismo, essa acusação apenas me parece
indicar uma sensibilidade exagerada
diante de qualquer evento lembrando a
fragilidade do consenso político. É a teocracia do templo que se responsabiliza
pela morte de um inocente, mas até um
de seus membros denuncia o processo
como uma farsa. E que uma multidão
possa um dia receber gloriosamente o
messias para, uma semana depois, precipitar sua morte, não é, infelizmente, privilégio de qualquer povo.
José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É
autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista"
(Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente
na seção "Brasil 505 d.C.", do Mais!.
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