São Paulo, domingo, 16 de maio de 2004 |
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+ livros Clássicos em sua área, "O Homem, o Estado e a Guerra" e "Guerras Justas e Injustas" analisam as origens e modalidades contemporâneas dos conflitos armados A mãe de todas as coisas
Francisco Doratioto
Flagelo dos mais antigos, criado e
reproduzido pelos próprios homens, a guerra entre povos motivou, durante séculos, pensadores e
líderes religiosos a refletirem sobre suas
causas e mecanismos para se alcançar a
paz. Não chegaram, contudo, a respostas
que atendessem satisfatoriamente à
complexidade do fenômeno guerreiro.
Após a Segunda Guerra Mundial, porém, ocorreram avanços nessa compreensão, e dois deles acabam de chegar
aos leitores brasileiros. Trata-se dos livros "O Homem, o Estado e a Guerra
-Uma Análise Teórica", de Kenneth N.
Waltz, professor emérito da Universidade da Califórnia, publicado originalmente em 1959, e "Guerras Justas e Injustas
-Uma Argumentação Moral com Exemplos Históricos", de 1977, de Michael
Walzer, professor do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, que, nos
anos 1960, militou contra a intervenção
dos EUA no Vietnã.
A guerra tem sido uma constante na
história; raras as sociedades que, em algum momento, não a tenham conhecido. Heráclito via na guerra "a mãe de todas as coisas", interpretando-a como
inevitável para garantir a sobrevivência.
Para Maquiavel, toda guerra necessária à
defesa do Estado era justa e deveria ser
preventiva, pois adiá-la representava
uma vantagem para o inimigo potencial.
O surgimento da diplomacia, no século
16, desenvolvendo as práticas negociadoras, contribuiu para reduzir a duração
dos enfrentamentos armados. No século
passado, fortaleceu-se o pacifismo em
decorrência do horror causado pela
mortandade, de militares e civis, nas
duas guerras mundiais e pelo surgimento de armas nucleares, capazes de destruir a vida humana no planeta.
Na primeira metade da década de 1990,
com a crise da União Soviética e sua conseqüente desagregação, por um breve
momento se levantou a hipótese de que a
guerra passaria a ser um fenômeno raro.
Parecia iniciar-se uma nova etapa na história, vista por alguns como derradeira,
posto que, crescentemente, ocorria a homogeneização do pensamento, em torno
de valores liberais, e havia expectativa de
fortalecimento do sistema onusiano [relativo à ONU], a cujas regras os Estados
se submeteriam, em favor do direito internacional e do multilateralismo.
A partir desse substrato comum, os interesses nacionais tenderiam a ser coincidentes, reduzindo atritos geradores de
guerra. Passou-se, então, a dar ênfase à
interpretação das relações internacionais
sob a perspectiva interdependentista, de
um mundo integrado, ainda que como
resultado das imposições de mercado da
chamada globalização.
Não foi o que ocorreu. A paz tornou a
se distanciar no horizonte, como se vê,
nos últimos anos, nas guerras; nas situações de conflito e nos atos terroristas. O
mundo tornou-se praticamente unipolar, dada a enorme concentração, pelos
Estados Unidos, de poderes econômico,
financeiro e militar, permitindo ao governo de George W. Bush ignorar a Carta
das Nações Unidas e, sem a autorização
do Conselho de Segurança, utilizar-se da
força para atingir seus objetivos internacionais. Uma realidade que, afinal, não
surpreende estudiosos da história das relações internacionais ou historiadores
militares. Desfazem-se análises otimistas
sobre uma rápida evolução benigna das
relações internacionais, rumo à construção de um mundo mais seguro.
Como conseqüência, há retomada do
interesse sobre as origens das guerras,
pela forma como são travadas e por sua
dimensão moral.
Mostra-se, pois, oportuna, apesar de
atrasada, a chegada ao Brasil dos livros
"O Homem, o Estado e a Guerra" e
"Guerras Justas e Injustas", clássicos no
estudo do conflito armado nas relações
internacionais.
Trata-se de análise particularmente oportuna no presente, quando os EUA promovem, contra o Iraque, um intervencionismo em nome da paz e da democracia, prática que já era condenada por Waltz ao escrever "O Homem, o Estado e a Guerra". O poder jurídico do Conselho de Segurança da ONU não foi suficiente para conter o poder militar norte-americano. Este, porém, parece ser contido pela possibilidade de a Coréia do Norte, tão carente de democracia quanto o Iraque de Sadam Hussein, ter armas nucleares ou promover uma ação militar convencional contra a vizinha Coréia do Sul. O comportamento distinto de Washington diante de dois Estados "do mal", para usar a terminologia do presidente Bush, dá argumentos a favor da análise de Waltz. O neo-realismo waltziano tem limitações ao ignorar grupos de pressão não-estatais; ao ver os interesses nacionais como permanentes, quando podem mudar a longo prazo, e ao não tratar das disputas internas nos Estados. Há, ainda, a possibilidade de um cenário internacional anárquico, no qual o equilíbrio de poder e a guerra não sejam características principais. É fato, porém, que os diferentes críticos do realismo tiveram que incorporar em suas análises dois conceitos realistas basilares: o poder e a racionalidade do Estado. Se para Waltz a possibilidade de guerra é natural, para Michael Walzer o conflito armado é um produto cultural e pode ser resultado de um ato de justiça. Walzer não faz rejeição idealista da guerra, mas se aproxima do pacifismo/idealismo ao se associar à herança do pensamento ocidental de que matar é um ato condenável, imoral. Ao mesmo tempo não nega que algumas guerras sejam inevitáveis e necessárias, posição que o aproxima do realismo, para em seguida dele afastar-se ao introduzir os conceitos de justeza e moralidade para se iniciar e se travar uma guerra. Defende, com exemplos históricos, que nem sempre é imoral o uso da violência nas relações internacionais -não se justifica, afinal, a ação aliada contra Hitler? Essa violência deve, porém, obedecer a princípios morais para manter-se justa. Rejeita o niilismo moral, a idéia de que os fins justificam os meios, negando razão ao general Sherman quando, na guerra civil norte-americana, ao assistir ao incêndio da cidade de Atlanta, declarou que "a guerra é crueldade e não é possível refinar a crueldade". Diferencia a justiça da guerra -"jus ad bellum"- da justiça na guerra -"jus in bello". Os Estados têm o direito à existência política autônoma e, se agredidos por outro Estado, justifica-se o uso da força para se defender: é a justiça da guerra. A intervenção em um Estado também é justa, quando nele houver duas ou mais comunidades em conflito; quando a violação de direitos humanos for maciça ou se der contra o país que promover intervenção militar em outro. São justas as guerras que defendam os valores da independência política; da liberdade comum ou da garantia da vida humana. Elas perdem essa característica ao romperem com o respeito aos direitos humanos ou se houver ações militares intencionais que levem à morte de civis. A crítica a esse princípio é a de ter aplicabilidade limitada pela estratégia das grandes potências, de intimidação mútua com armas nucleares, que, se usadas, impedirão a distinção entre civis e militares. Força desproporcional A guerra também deixa de ser justa quando uma das partes faz uso desproporcional de força, exige, de modo não razoável, a rendição incondicional do inimigo ou prossegue desnecessariamente com o conflito. Tarefa polêmica estabelecer, com exatidão, esses limites. O Império do Brasil não deveria usar, a partir de janeiro de 1869, após quatro anos de guerra, forças desproporcionais contra o ditador paraguaio Solano López? Não era razoável, no início de 1945, os aliados exigirem a rendição incondicional de Adolf Hitler? Afinal, essas guerras foram justas pelos critérios de Walzer, ao resultarem da reação às agressões promovidas pelos dois tiranos, os quais, prostrados, se recusavam a aceitar as conseqüências dessa condição, a derrota. "Guerras Justas e Injustas" defende que elas podem ser instrumentos de justiça e não devem ser meios de vingança. Responder a uma agressão com uma reação militar é justo, pois a outra opção possível, resistir pacificamente, não é pragmática. O exercício do pacifismo, para resistir a uma invasão militar, argumenta Walzer, não é pragmático, por partir da premissa de que o agressor aceitará deslocar o eixo da sua ação do uso da força para o jogo político, o que não ocorre na realidade. Mesmo quando justas, parece impossível retirar totalmente o caráter selvagem das guerras, tanto que o próprio Walzer encontra limites em sua defesa do "jus in bello". Uma guerra justa, afirma, deve ser ganha: "Existe o imperativo moral da vitória". Nessas condições e em casos extremos, sem perspectiva de vitória para o lado justo, é lícito romper as normas legítimas da conduta militar, "quando não fazê-lo implicaria não apenas uma derrota, mas a extinção da comunidade política". Conflito dentro do Estado Escrito na década de 1970, durante a Guerra Fria, em que se enfrentavam dois leviatãs, os EUA e a União Soviética, o Estado-nação é o protagonista de "Guerras Justas e Injustas". Contudo, no prefácio à terceira edição, de 1999, Walzer reconhece a necessidade de mudança dessa análise, pois o maior perigo, enfrentado pela maioria das pessoas no mundo, "provém de seus próprios Estados". O dilema da política internacional passou a ser sobre os requisitos para a aplicação, em favor de grupos sociais massacrados pelos Estados onde vivem, da "intervenção humanitária" por forças militares estrangeiras. Entre a intervenção unilateral, promovida por um Estado, e a coletiva, ambas "impuras", posto que feitas também com outras motivações que não só as morais, Walzer opta pela segunda, promovida pela ONU. Ao terrorismo é dedicado um capítulo em "Guerras Justas e Injustas". A estratégia terrorista é a de aterrorizar a população e destruir o moral de uma nação, utilizando-se do assassinato aleatório de pessoas inocentes. Essa é a diferença entre terroristas e militantes revolucionários clássicos, os quais matavam autoridades e agentes políticos. O moderno terrorismo exige a rendição incondicional do "inimigo", constituindo-se em "forma totalitária de guerra e política", ao desrespeitar convenções de guerra e ultrapassar os limites morais "além dos quais parece ser impossível qualquer outra limitação". Os tambores da guerra continuam a soar. Negá-la é obrigação moral, pois matar é um ato bárbaro, e histórica, para se poder alcançar uma sociedade internacional caracterizada pela construção de interesses comuns, e não pela imposição daqueles de alguns Estados. Negar a guerra, porém, não a elimina do horizonte histórico visível da humanidade; suas diferentes formas continuarão a fazer parte das relações internacionais por tempo não previsível. No debate para melhor compreendê-la, "O Homem, o Estado e a Guerra" e "Guerras Justas e Injustas" constituem leitura obrigatória. Francisco Doratioto é professor no curso de relações internacionais da Universidade Católica de Brasília e no mestrado em diplomacia do Instituto Rio Branco. É autor de "Maldita Guerra - Nova História da Guerra do Paraguai" (Cia. das Letras). O Homem, o Estado e a Guerra 332 págs., R$ 37,00 de Kenneth N. Waltz. Trad. Adail Ubirajara Sobral. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/ 340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/ 3241-3677). Guerras Justas e Injustas 620 págs., R$ 63,18 de Michael Walzer. Tradução de Waldéa Barcellos. Ed. Martins Fontes. Texto Anterior: + brasil 505 d.C.: Purificação pelo sangue Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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