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Em "Cartas de um Sedutor", que está sendo relançado, Hilda Hilst completa sua
"trilogia obscena" e subverte o gênero pornográfico com requintes de linguagem
A cortina de fumaça da obscenidade
Heitor Ferraz
especial para a Folha
Em certo momento de sua carreira
literária, a escritora Hilda Hilst resolveu, como ela mesma disse, que
"tinha de fazer umas coisas porcas". Embrenhou-se pelo que chamou de
literatura pornográfica, publicando "O
Caderno Rosa de Lori Lamby" (1990).
Em seguida, veio o segundo livro: "Contos d'Escárnio/Textos Grotescos", no
mesmo ano. A trilogia obscena da autora
se completou no ano seguinte com "Cartas de um Sedutor", que acaba de ser relançado pela editora Globo.
A trilogia foi uma tentativa de conquistar os leitores que ainda andavam distantes de sua obra. Porém ela mesma reconheceu que a busca falhou, já que sua literatura pornográfica era tão exigente
quanto a literatura que praticara em seus
outros livros (que incluem poemas, peças de teatro e ficções). "Diziam que eu
era dificílima na literatura pornográfica", declarou numa entrevista ("Cadernos de Literatura Brasileira", nš 8).
"Cartas de um Sedutor" é um exemplo
depurado dessa exigência e falha. A falha
é que o livro não segue a linha do vale-tudo da literatura de aventura pornográfica, com cenas "calientes" que revirem os
olhinhos do leitor à procura somente de
entreter-se com vastas emoções. A falha
é ela mesma filha da exigência da autora,
que não abre mão da montagem de quadros amplos e complexos como os deste
livro. A questão da obscenidade, que se
transformou numa característica bastante divulgada da obra de Hilst, surge
como uma força irônica e crítica dentro
do livro -algo como uma estratégia da
autora que acaba por debochar da literatura pornográfica ao praticá-la com requintes de linguagem que hoje são raros
nesse gênero.
E ainda se pode dizer que a obscenidade vira uma espécie de cortina de fumaça
sobre questões que a transcendem.
Logo no começo do livro, o personagem Stamatius, um escritor que perdeu
tudo e se tornou mendigo, revirador de
lixo, diz para Eulália, garota de rua que
vive com ele: "Sou um escritor brasileiro,
coisa de macho, negona". Pouco antes, a
jovem lhe havia sugerido que escrevesse
sobre ela: "Escreve de mim, da minha vida antes deu te encontrar, da surra que
Zeca me deu, da doença quele me passou, da minha mãe que morreu de dó do
meu pai quando ele pôs o fígado inteirinho pra fora, do nenê queu perdi, do
Brasil ué!".
Na página seguinte, inicia-se a série
obscena de cartas de Karl para sua irmã
Cordélia. Os dois mantiveram relações
sexuais na adolescência. Cordélia, por
sua vez, teve uma relação sexual com o
pai. As cartas de Karl giram em torno
dessas relações familiares e em torno do
seu desejo por homens do povo, como o
mecânico Alberto, que ele chama de
"Albert", em homenagem a Camus. Há
aí jogos de dominações de toda ordem,
de rebaixamentos, de pulsões e esnobismos de uma elite decadente.
A armação da autora é astuciosa e realça o choque entre dois mundos: o do escritor falido que é Stamatius, que se debate entre uma literatura não-comercial
e a comercial, ao mesmo tempo em que
ironiza a pobre Eulália, "o Brasil ué", e o
do escritor aristocrata e
vaidoso que é Karl, que
esnoba a literatura enquanto escreve cartas para sua irmã Cordélia, relatando -e se vangloriando de- sua vida sexual.
Para montar essa narrativa intrincada, Hilda Hilst trabalha de um
lado com o romance epistolar, acrescentando a ele uma linguagem devedora
certamente da literatura erótica do século 18, como a de Bocage; de outro, com a
narrativa curta, explorando uma variação de pequenos contos na surpreendente parte final do livro.
O humor que a autora cria em cada
uma dessas páginas é corrosivo e inquietante. Espalha sugestões
de leitura que não se reduzem ao obsceno ou ao
pornográfico. Num belíssimo ensaio de 1970, o crítico Anatol Rosenfeld já
notava que Hilst se utilizava de todos os gêneros
literários para compor sua prosa (a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa de ficção).
Característica que permanece em sua
obra. É uma literatura, como ele dizia,
que visa "a enunciar a totalidade do homem através de sua multiplicidade -e
essa visão prismática ou caleidoscópica
forçosamente teria que recorrer a todos
os gêneros para exprimir-se na sua plenitude". E não só: é uma literatura que se
enraíza em problemas brasileiros -como a pobreza, a desigualdade, a marginalidade, a falta de perspectiva etc.- de
forma sutil e refinada.
Heitor Ferraz é poeta e jornalista, autor de "A Mesma Noite" e "Hoje como Ontem ao Meio-Dia" (ed. 7 Letras).
Cartas de um Sedutor
194 págs, R$ 25,00
de Hilda Hilst. Ed. Globo (av. Jaguaré, 1.485, CEP 05346-902,
SP, tel. 0/ xx/11/3362-2000).
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