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Coletânea de textos esparsos, "Durante Aquele Estranho Chá" marca a afirmação do método narrativo criado por Lygia Fagundes Telles para abordar o passado
A viagem errática da memória
Luís Bueno
especial para a Folha
Durante Aquele Estranho Chá"
(ed. Rocco) é uma espécie de livro involuntário de Lygia Fagundes Telles. Traz textos de diferentes naturezas, publicados originalmente em jornais e revistas esparsos no tempo, escritos com diferentes fins. Das
reminiscências da infância ao discurso
de posse na Academia Brasileira de Letras, das impressões de viagem às reflexões sobre Machado de Assis ou sobre a
língua portuguesa, tudo tem lugar nele.
A impressão que fica para o leitor, à
medida que avança em suas páginas, é a
de uma viagem errática, sem mapas ou
bússolas, já que o organizador do volume, Suênio Campos de Lucena, mistura
textos de épocas diferentes sem informar
de quando são e sem indicar os critérios
que o levaram a escolher esses textos e
não outros, preferindo, em sua introdução, falar da obra de Lygia Fagundes Telles em termos bem amplos.
Esse caráter fugidio do livro, no entanto, antes de se constituir em problema,
como pode parecer à primeira vista, acaba se revelando sua grande qualidade.
De fato, mais do que uma simples reunião de textos, "Durante Aquele Estranho Chá" pode ser lido como um livro de
memórias construído aos poucos.
Como convém a livros desse tipo, as repetições que muitas vezes aparecem, sob
a forma do repisar de certos elementos, e
a descontinuidade que há entre os textos
só ajudam a compor o ziguezague que,
no fundo, constitui o ritmo imprevisível das lembranças.
Dessa maneira, este novo livro se aproxima bastante da obra anterior da
autora, "Invenção e Memória" (ed. Rocco, 2000).
Em primeiro lugar, porque ambos são povoados
pelos mesmos personagens -o pai delegado ou promotor, a
mãe pianista, os colegas do curso de direito- e criam os mesmos ambientes
-o da infância passada em pequenas cidades, o da juventude na São Paulo dos
anos 40. Em segundo lugar, e principalmente, por uma espécie de método narrativo que Lygia Fagundes Telles vem
criando para tratar do passado.
Para perceber o que compõe esse método narrativo, basta ver o que há de melhor em "Durante Aquele Estranho
Chá", como o texto que deu nome ao livro. É a narração do único encontro da
autora com Mário de Andrade. Partindo de um pequeno incidente no presente, a tarefa de escrever
algo para uma homenagem ao centenário de nascimento do escritor (1893-1945), o texto se dirige lentamente a observações gerais sobre como o prestígio dos modernistas atingia uma jovem escritora no início dos
anos 40 em São Paulo.
Essa fresta que se abre no presente para
a observação do passado é suficiente para que a memória de um momento específico surja, com a criação de um personagem fascinante, desenhado em duas
páginas: o Mário de Andrade da Lygia
Fagundes Telles. Nesse personagem está
algo do Mário de Andrade que conhecemos de seus próprios textos, na mania de
se referir à própria feiúra chamando-se
de "um canhão", tão presente em suas
cartas; mas também está muito dos outros personagens que aparecem no livro,
descritos em suas características menores e mais significativas para que possam
se converter em figuras com marcas facilmente identificáveis, como só os personagens de ficção podem ser.
De quebra, instalada no campo da visão periférica dessa pessoa que lembra,
aparece uma cidade de São Paulo do passado em contraste com a do presente.
Assim, se o olho da memória enxerga uma rua Barão de Itapetininga de "poucos passantes e bem calçados, chapéu de feltro", a boca de quem está com os pés
no presente pergunta: "E os camelôs? E os pedintes?".
É como se aquele presente, de onde
parte tanto o texto quanto o mergulho
no passado, se impusesse sobre a evocação. Vitória do presente sobre o passado
em pleno campo da memória? Não, porque o passado volta, no final do texto,
sob a forma de uma carta de Mário de
Andrade, a respeito da qual só ficamos
sabendo que nada saberemos: "Mas acabei por perdê-la numa sala de aula e nunca mais".
É nessa suave tensão, convertida em
forma de narrar, que "Depois Daquele
Estranho Chá" nos apresenta, além de
Mário de Andrade, Clarice Lispector,
Paulo Emílio Salles Gomes, Glauber Rocha, Simone de Beauvoir ou a cidade de
Teerã antes da revolução islâmica, esta
num dos momentos mais fortes do livro.
Juntamente com "Invenção e Memória", este "Durante Aquele Estranho
Chá" coloca Lygia Fagundes Telles ao lado de escritores como Jorge Amado e
Murilo Mendes, que também optaram
pela descontinuidade do fragmento, pelo
abandono do grande fluxo narrativo que
se encontra nas memórias de Graciliano
Ramos ou de Pedro Nava. Mesmo que
seja, em princípio, um livro involuntário,
despretensioso, ajuda a compor mais um
passo da tradição, ainda em processo de
afirmação, do livro de memórias como
gênero literário no Brasil.
Luís Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.
Durante Aquele
Estranho Chá
206 págs, R$ 25,00
de Lygia Fagundes Telles. Org.
de Suênio Campos de Lucena.
Ed. Rocco (r. Rodrigo Silva, 26,
5º andar, CEP 20011-040, RJ, tel.
0/xx/21/2507-2000).
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