São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002 |
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+ livros Dois clássicos do século 18 inglês, "Uma Viagem Sentimental", de Sterne, e "Um Diário do Ano da Peste", de Defoe, consolidaram estilos opostos que influenciariam autores como Joyce e Camus O FLAGELO DA DOENÇA E A SALVAÇÃO DA IRONIA
Leonardo Fróes
Defoe e Sterne representam duas tendências
que a literatura assumiu no século 18 inglês,
quando a "comédia civilizada", então no auge,
misturava-se à lembrança dos "castigos do
céu", a peste e o fogo, que no final do século anterior haviam dizimado a população de Londres, deixando das
construções da cidade, grande parte em madeira, somente um quinto de pé.
Defoe, ao relatar a primeira das calamidades, seguiu o
espírito de seu "Robinson Crusoe", publicado pouco
antes: ateve-se à gravidade e sensacionalismo dos fatos
para criar um estilo realista que se mantém sem adornos, conduzindo por um lado à dicção dos jornais e, por
outro, à escrita romanesca voltada para os instantâneos
da vida. Sterne, eximindo-se da razão e decoro prevalecentes na corte, produziu antilivros que se fundamentam apenas na realidade tão íntima que as próprias frases se arrogam.
Não lança mão de enredos programáticos, personagens convincentes ou descrições pictóricas. Mas, malicioso e às vezes obsceno para os pudores da época, parece introduzir o leitor nos recantos mais sombrios de
um laboratório de afetos, onde mostra que se pode escrever, tal qual se pensa, por blocos de associações.
Sterne foi tido com frequência, por isso, como uma
espécie de pré-Joyce que desce ao fundo dos estratos
mentais e zomba até do que diz. Como em Swift, de cujo
amargor escatológico ele porém não compartilha, seus
temas não passam de pretextos para alinhavar os excursos ou longas digressões paralelas em que reside a essência de seu pensamento. Já o tomaram também por
pré-romântico, como se seu pendor afetivo fosse um
dos canais que levavam do ocaso do classicismo à invenção do sentimento nas letras.
consternação das ruas enfermas, e ainda por cima nos remete para a guerra contra a Holanda, que lhe foi contemporânea e tornou mais complicada e aflitiva a situação dos ingleses. Defoe porém não pôde ler essa obra, composta numa taquigrafia secreta, que só em 1825 viria a ser decifrada e convertida em livro. Se não leu Pepys, o repórter da peste terá lido no entanto Thomas Vincent, um pregador não-conformista que se manteve em seu posto, ajudando os cidadãos a morrer e tomando a epidemia e o grande incêndio de Londres, no folheto intitulado "God's Terrible Voice in the City" [A Terrível Voz de Deus na Cidade", por corretivos divinos para os pecadores terrenos. O folheto de Vincent, que se encontra na antologia "A Restoration Reader", de James Holly Hanford, tem a estrutura de um rascunho do que Defoe escreveu. Nele já estão as estatísticas, semana por semana, dos números de mortos nas diversas partes de Londres e sobretudo a forma moralizante de encarar os flagelos como merecido castigo. O pregador é tão cioso, quanto a esse ponto, que chega a organizar um catálogo dos principais pecados londrinos, entre os quais a hipocrisia, a fornicação, o adultério, a falta de higiene e as lamúrias. Na passagem da era das crendices para a das fumaças da indústria, ninguém podia suspeitar de que o bacilo bubônico, só identificado por Alexandre Yersin em 1894, fosse transmitido ao homem pela pulga do rato. Em 1665, admitia-se apenas que a peste vinha do ar e que só seria superada quando o fogo, lambendo a capital no ano seguinte, enfim pudesse purificá-la dos seus desatinos e erros. "Um Diário do Ano da Peste" segue essa linha de raciocínio. Mas Defoe, ao contrário de Vincent, cujo texto é um desgracioso registro, era um escritor polivalente e antenado que, usando o tema da calamidade, fez um romance-reportagem que se aproveita do medo coletivo para o insuflar e causar sensações de horror. Em sua pauta, e motivado decerto pela peste em Marselha, em 1720, dois anos antes de seu livro, ele não se limita a incluir dados objetivos. Desenvolve também cenas chocantes, que ou bem imaginou ou colheu no anedotário popular sobre o assunto. Os empestados de Londres, por ordem do governo, eram trancafiados em casa sob vigilância severa, e a descrição de seus padecimentos é um dos pontos altos do texto. Mas nada se iguala, em termos da repercussão pretendida, à cena em que um doente mortal vem como um louco pela rua para agarrar uma mulher que passava e, contaminando-a, aplicar-lhe na boca um prolongado beijo pestífero. Os ratos de Oran Em 1947, ao abrir seu romance "A Peste" com uma epígrafe que foi buscar em Defoe, Camus indicaria o que deve ao velho mestre do gênero. Os ratos que invadem Oran são agora os nazistas que ocuparam a França, enquanto o mal que eles espalham serve para simbolizar os efeitos da epidemia da guerra. Não é só pelo estilo simples que a narrativa de Camus se aproxima da que Defoe nos legou. Além disso, o mesmo tom moralizante está presente nas duas, muito embora a mais antiga se aferre à idéia de punição sugerida pelo puritanismo britânico. Na passagem da era das fumaças para a dos impulsos psíquicos, a que já deveríamos estar vivendo de há muito para aumentar o poder da consciência, é experiência que enriquece ler em conjunto estes livros de Defoe e Sterne, ambos bem traduzidos e anotados. Suas técnicas são divergentes e seus temperamentos opostos, mas há zonas de interesse em cada rumo seguido. Desde que se abra a cabeça, conhecê-las contribui para tornar o mundo maior. Leonardo Fróes é poeta, ensaísta e tradutor, autor de "Argumentos Invisíveis" e "Vertigens" (ambos pela ed. Rocco). Um Diário do Ano da Peste 287 págs, R$ 28,00 de Daniel Defoe. Trad. E. San Martin. Artes e Ofícios (r. Henrique Dias, 201, CEP 90035-100, Porto Alegre, RS, tel. 0/xx/ 51/ 3311-0832). Uma Viagem Sentimental Através da França e da Itália 158 págs, R$ 22,00 de Laurence Sterne. Trad. Bernardina da Silveira Pinheiro. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2537-8770). Texto Anterior: + autores: O medo do eleitor diante da esquerda oficial Próximo Texto: A viagem errática da memória Índice |
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