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Para os candidatos de governo, "protestar", isto é, não se identificar com
os partidos consensuais, é uma doença
O medo do eleitor diante da esquerda oficial
Jacques Rancière
Entre o fim de abril e o início de maio as
ruas de Paris e de várias outras cidades
da França se encheram com marchas
de manifestantes e principalmente de
multidões de jovens como não se viam desde
maio de 1968. Mas uma diferença separava
essas duas primaveras: em 1968 os manifestantes opuseram ruidosamente a realidade
do poder político e social que eles representavam aos jogos eleitorais dos partidos.
"Eleições, armadilha para idiotas" foi a palavra de ordem que exprimiu seu desinteresse
pelas eleições então organizadas pelo general
De Gaulle. "Abstenção, armadilha para idiotas" foi, por sua vez, a palavra de ordem sob a
qual desfilaram em 2002 os velhos que não
tinham mais descido à rua desde aquela época e os jovens que desciam pela primeira vez.
Como se o movimento de rua tivesse por
principal tarefa expiar, de uma vez por todas,
30 anos de pecado.
Esse talvez tenha sido o sentido mais profundo dos acontecimentos que cercaram a
eleição presidencial francesa. De tudo o que
se disse, o aspecto mais importante não foi o
resultado alcançado pela extrema direita. Este foi sem dúvida ligeiramente superior à
média que ela obteve nos últimos 15 anos,
mas não teve de forma nenhuma o caráter de
um maremoto. E a força que ele traduziu era
muito mais a de um movimento de opinião
difuso que a de um partido fascista prestes a
tomar o poder. O que transformou esse ligeiro crescimento em trauma é que o mecanismo do sistema majoritário, feito para garantir o monopólio da luta pelo poder a dois
grandes partidos de governo, marginalizando todas as outras forças, começou a funcionar ao contrário. O Partido Socialista se beneficiou por muito tempo do peso eleitoral
da extrema direita e da subtração que ela efetuava sobre os votos da direita. Desta vez o
mecanismo se voltou contra ele.
Mas o representante socialista pôde ser eliminado do segundo turno pela extrema direita por outro motivo, evidentemente: faltaram-lhe os votos da esquerda com os quais
contava. Aqui mais uma vez o mecanismo
majoritário funcionou ao contrário.
Se a esquerda oficial conseguiu chegar ao
poder, nele se manter ou se reencontrar durante 20 anos, foi graças aos votos da outra
esquerda: aquela que reclama a herança de
68, que lutou nos movimentos sociais de
1995, se mobilizou nos anos seguintes contra
leis racistas, pela regularização dos trabalhadores sem documentos ou ainda contra a globalização capitalista. A esquerda oficial de modo geral aproveitou os votos dessa esquerda militante, mais interessada no desenvolvimento dos movimentos políticos de luta do que nos processos eleitorais. Como ela estimava que esses votos estavam garantidos de qualquer
modo, nunca se esforçou para conquistá-los.
Em particular, nada fez para dar uma
solução política aos problemas da integração dos trabalhadores de origem estrangeira e seus filhos. Em 20 anos ela
não deixou de adiar a implementação de
uma promessa eleitoral bastante simples: a participação dos estrangeiros nas
eleições locais. Os franceses não estavam
maduros para essa medida, diziam. Como se o eleitor médio estivesse realmente muito atrasado para admitir a idéia
absolutamente incrível segundo a qual é
normal que aqueles que vivem e trabalham num lugar participem das discussões e das decisões sobre a vida desse lugar. Esses franceses "ainda não maduros" eram simplesmente os eleitores do
partido em frente, que os governantes
socialistas pretendiam seduzir mostrando seu espírito de responsabilidade.
Essa é na verdade a lógica do sistema
majoritário: que os partidos de poder se
encarreguem não de cumprir os compromissos assumidos com os eleitores,
que na opinião dos partidos serão de todo modo obrigados a votar neles, mas de
recolher entre os eleitores do partido adversário o pequeno suplemento que garanta sua vitória.
O verdadeiro acontecimento das eleições presidenciais é que essa lógica se
imobilizou. Pela primeira vez desde 1968
a esquerda militante recusou-se maciçamente a votar na esquerda oficial. E é claro que foi ela a que mais se chocou com o
resultado dessa ruptura e a primeira a
descer à rua, com os jovens colegiais, para exprimir sua rejeição absoluta às
idéias e aos valores dessa extrema direita
xenófoba e racista, que o fracasso da esquerda oficial qualificou para o segundo
turno eleitoral. Mas foi aí que se produziu uma estranha inversão das coisas.
A esquerda oficial, sua imprensa e seus
intelectuais realmente apresentaram aos
manifestantes este simples discurso: por
que vocês estão na rua hoje, se não devido a uma situação pela qual são os principais responsáveis? Se tivessem votado
como eleitores responsáveis no candidato socialista, nada disso teria acontecido.
Mas vocês preferiram se refugiar na abstenção ou dispersar seus votos em candidatos de protesto.
Essa idéia de protesto merece uma reflexão. Todos os analistas autorizados
nos explicaram extensamente que havia
nessa eleição duas espécies de candidato:
candidatos de governo e candidatos de
protesto. Mas o que distingue um candidato de governo de um candidato de
protesto? É simplesmente o fato de que
um já tem o hábito de governar, e o outro
não. O argumento se resume a dizer que
o poder deve voltar ao poder, isto é, aos
dois grandes partidos consensuais que o
dividem em alternância. Infelizmente essa bela lógica é perturbada pelo fato dos
"protestativos". O que é um protestativo? Poderíamos sugerir que os protestativos são simplesmente aqueles que não
se satisfazem com uma política reduzida
à arte de obter e manter o poder, e que
até os sucessos da extrema direita estão
relacionados ao que esta chama de decisões coletivas claras sobre os grandes desafios nacionais e internacionais.
Compreendemos que essa explicação
não seduz os "candidatos de governo"
mais que aos jornalistas, politólogos, sociólogos e outros intelectuais encarregados de explicar o pequeno sucesso dos
primeiros. Para eles, "protestar", isto é,
não se identificar com os partidos consensuais, é uma doença.
E, para os que representam a ciência
adulta do governo, há duas grandes
doenças: a velhice e a juventude. Eles dividem assim os protestativos: de um lado
as "vítimas da modernidade", os que não
conseguem se adaptar às novas condições econômicas, tecnologias ou maneiras de viver e portanto votam nos valores
anacrônicos da extrema direita; do outro, as eternas crianças que sonham com
mudanças políticas e sociais radicais e se
recusam a apoiar o socialismo moderno,
liberal e responsável.
As doenças são assunto dos médicos.
Para os que sofrem da doença senil, se
propõem medidas para ajudá-los a viver
melhor sua situação, esperando que a
marcha da modernidade os leve suavemente até o túmulo. Para os que sofrem
da doença juvenil, por outro lado, há necessidade de um tratamento de choque.
É preciso fazê-los compreender de uma
vez por todas o que é política. Eles imaginam que esta consiste em lutar por uma
certa idéia de comunidade, em confiar
no poder da inteligência e da ação da
maioria. É preciso finalmente curá-los
dessa loucura, ensiná-los a duvidar radicalmente da capacidade coletiva e de sua
própria capacidade de julgar e de agir
conforme suas opiniões. É preciso lhes
ensinar que a política, para eles, deve
consistir apenas em votar, mas sobretudo votar contra sua opção.
Aquele que vota tende sempre a fazê-lo
segundo as idéias que considera justas e
nos candidatos que lhe parecem mais
próximos delas. Isso também é irresponsabilidade. É preciso fazer os irresponsáveis compreenderem que o princípio do
voto não deve ser a opção, mas a submissão, não a confiança, mas o temor.
É em suma o que Hobbes disse ao fazer
do temor o princípio de uma comunidade baseada na submissão incondicional
ao poder soberano. Os tenores da esquerda oficial transformaram a teoria
hobbesiana em exercício prático de mortificação: você não quis votar no candidato da esquerda oficial e responsável.
Deve expiar. E como expiar senão votando maciçamente no segundo turno no
homem que representa o atual sistema
de governo no que ele tem de mais medíocre e mais corrupto, votando em suma na pura e simples submissão ao soberano -submissão tanto mais exemplar
quanto mais desprezível for a pessoa que
encarna o soberano.
Como pôr em ação o mecanismo da
submissão? Jogando com a dupla mola
da culpa e do medo. Produzindo medo
por meio da culpa e culpa por meio do
medo. A coisa estava complicada porque
as pesquisas realizadas na noite do primeiro turno já deixavam prever uma vitória esmagadora de Chirac no segundo.
Vimos assim nos dias seguintes se desenvolver na imprensa e nos meios intelectuais e artísticos de esquerda uma intensa campanha alarmista, alegando pseudopesquisas dos serviços de informação
que atribuíam porcentagens fantásticas a
Le Pen. Vimos se desenvolverem campanhas de pregação, muitas vezes conduzidas por figuras mais ou menos emblemáticas dos anos 1968, para convencer
cada um de que, se não colocasse na urna
um voto com o nome de Chirac, se tornaria cúmplice consciente de uma próxima abertura dos campos de concentração na França.
E foi assim que vimos centenas de milhares de manifestantes voltarem seu poder contra si mesmos. Eles desceram à
rua para exprimir seu desacordo e sua
recusa diante da extraordinária publicidade que o fracasso da esquerda oficial
acabava de oferecer ao candidato de uma
França racista. Eles tiveram de desfilar
sob as bandeiras da contrição e do medo,
levando cartazes que diziam "vote no ladrão, não no fascista" ou ainda "mais vale uma República de Bananas que uma
França hitlerista".
Como ninguém acreditava seriamente
na ameaça de uma França hitlerista, a
palavra de ordem queria dizer na verdade: mais vale uma República de Bananas
que a república que nós todos aqui reunidos poderíamos imaginar construir
por nossas próprias forças. "Mais vale
uma República de Bananas" quer dizer:
mais vale a submissão, em geral.
Sabemos o sucesso imediato que teve
essa campanha. Ela garantiu a vitória
eleitoral daquele que encarnava a submissão pelo medo. Da mesma forma,
forneceu uma verificação irrefutável ao
argumento que fez a fortuna da extrema
direita: o argumento segundo o qual ela é
a única força que se opõe ao consenso,
em suma, a única força que faz política.
Quanto aos efeitos a longo prazo dessa
dupla demonstração, não parece que os
promotores dessa campanha tenham se
preocupado muito.
Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do "Mais!".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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