São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003 |
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+ cultura Disputa por espaço entre compositores e intérpretes está presente desde as origens da música ocidental e foi responsável por sua evolução e diversidade atual O conflito entre harmonia e invenção
Rogério Cezar de Cerqueira Leite
O intérprete, o melômano e até o
compositor já não estranham,
se acostumaram a um fato extravagante, insólito, para dizer
o menos. Chamamos "concerto" uma
composição instrumental em que é explorado o contraste entre um ou poucos
instrumentos e o conjunto global dos demais que compõem a orquestra. Imaginemos apenas se, um dia, assistindo a
uma peça de Shakespeare, subitamente
um dos atores assumisse o centro do palco, calando os demais, passasse a recitar
um poema de sua própria autoria ou de
outro poeta qualquer.
O que não faríamos? Vaias, injúrias variadas e ovos, se disponíveis, seriam lançados contra o iconoclasta que ousou
violar a obra sacrossanta do gênio de
Stratford-upon-Avon. Não obstante é
exatamente isso que ocorre em quase toda apresentação musical em que esteja
incluído um concerto. Esse enxerto ilegítimo se chama "cadenza".
Certos solistas compõem a própria,
outros utilizam "cadenzas" de terceiros
ou do compositor do concerto apresentado. Quando examinada fora de seu
contexto histórico, essa prática parece
uma estultícia injustificável. Todavia, como se argumentará abaixo, foi ela um
dos principais fatores responsáveis pela
evolução e diversidade da música ocidental, desde seus primórdios.
Já em começos do século 9º, imediatamente depois que, por imposição de
Carlos Magno, o próprio da missa se homogeneiza e a rígida disciplina imposta
pela aliança Estado-Igreja estabiliza texto e melodia do canto gregoriano, surgem as primeiras manifestações dos impulsos inovadores dos cantores. Comentaristas da época, embora desarmados
de qualquer escrita musical, atestam esse
fenômeno.
O melisma começa como improvisação do cantor. Seu impulso criativo não
será contido pelos rígidos cânones da
tradição oral que disciplina a prática do
cantochão. Começa como uma breve
modulação sobre uma nota que acompanha uma sílaba. Aos poucos se estende
para sílabas vizinhas até que se constitui
em um fragmento melódico independente, paralelo à "vox principalis", o tenor gregoriano original. O compositor,
anônimo, solitário ou coletivo, seja lá
quem for, se apodera então da inovação
e oficializa a forma primitiva de polifonia, o órgano ("organum"), que nasce
portanto da imaginação do intérprete
tanto quanto do trabalho do compositor.
Novamente, inconformado com as limitações decorrendo da forma restrita à
uma segunda voz em paralelo, o intérprete busca, já no século 10º, outras soluções, e dessa inquietação surge o movimento contrário que novamente é apropriado pelo compositor sob a forma do
descanto. Em seguida, já no século 11,
com o advento de formas primitivas de
escrita musical (neumas), surgem os primeiros ensaios de polifonia livre (floreada) e simultaneamente os primeiros tropos, prelúdios breves introdutórios a
certas partes da missa, tanto do próprio
quanto do ordinário, que a essa época já
estava estabilizado.
Novamente um processo se inicia como movimento liberalizador, inovador,
do intérprete e é subsequentemente
apropriado pelo "compositor". É claro
que intérprete e compositor não são necessariamente pessoas distintas. Todavia, mesmo quando são a mesma, haverá
dois momentos distintos, duas posturas.
Já no século seguinte, trovadores são
poetas-compositores e intérpretes. Mas
naquele momento em que cantam não
são compositores, embora improvisem,
com frequência, enquanto cantam.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite é físico, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas e membro do Conselho Editorial da Folha. Texto Anterior: + autores: A ficção científica da terceirização Próximo Texto: + livros: Confiança e traição da razão Índice |
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