São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003 |
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+ livros "Heiner Müller - O Espanto no Teatro" traz entrevistas e textos do dramaturgo alemão que tratam de Brecht Confiança e traição da razão
Sérgio de Carvalho
Juarez Ricardo, um médico comunista que tinha uma confiança iluminista na razão, dizia que o teatro de Heiner Müller faz lembrar aquele sujeito
que conta a piada e depois precisa explicar. Podemos inverter a fórmula bem-humorada e pensar na escrita de Müller
como uma polifonia de explicações sobre uma piada que não pode ser contada
sem que se mostre seu lado de tragédia.
Essa piada impossível é a história recente
da Alemanha e do mundo nascido nas
grandes guerras, quando se impôs a uniformização capitalista e entrou em crise
o projeto revolucionário. Por desencanto
com a época, não com a vida, o ideal de
Müller era uma arte capaz de "tornar a
realidade impossível".
A seleção de textos contida em "Heiner
Müller - O Espanto no Teatro", organizada por Ingrid Dormien Koudela, mostra
que o problema da confiança na razão
ocupa o núcleo da divergência estética
entre Müller e Brecht no que se refere à
produção de uma arte teorizante e combativa. Todas as entrevistas e artigos do
livro desenvolvem a frase famosa de que
"usar Brecht sem criticá-lo é traição".
E a principal crítica repudia a migração
de Brecht para um classicismo marxista
que garantiu seu êxito público ao mesmo
tempo em que limitou sua eficácia estética. Apenas nas peças didáticas e nos fragmentos inconclusos, como "Fatzer", predominaria a pesquisa radical das formas.
Somente nos textos escritos como "exercício de autocompreensão" que Brecht
teria se desobrigado de "forjar um produto perfeitamente acabado para as elites contemporâneas ou do futuro".
Fábula tranquilizadora O elogio do trabalho experimental de Brecht -e de fato a técnica teatral dialética é sua contribuição literária mais avançada, não sei se a mais importante- surge como argumento de Müller para uma dupla destruição: da narrativa e da inteligibilidade. É como se a fábula fosse um elemento tranquilizador, uma opção de rebaixamento técnico que sacrifica o realismo em nome do popular, termos de Brecht numa polêmica com Lukács. Ao entender que "Brecht elaborou seu arsenal de formas a partir da situação de classe e dos interesses do proletariado europeu antes da revolução", Müller preferiu registrar as feridas das vítimas da catástrofe capitalista, incluindo na imagem os custos da revolução socialista, como informa Hans-Thies Lehmann. Para ele, a dialética da "negação da negação" não permitia mais uma compreensão clara dos movimentos do tempo, e era preciso obscurecer certas coisas para que pudessem ser enxergadas de novo. Parábola da luta Quando se compara uma peça como "Horácio", publicada nesta coletânea, à peça didática "Os Horácios e os Curiácios", de Brecht, observa-se a diferença quanto ao efeito no espectador. A versão de Brecht propõe uma parábola da luta em que o combatente mais fraco aprende a reconhecer que o inimigo não é indivisível, num jogo que suscita um prazer quase científico em quem vê. Já a peça de Müller relata o absurdo julgamento de um soldado que foi, ao mesmo tempo, herói de guerra e assassino da irmã. O foco está no sentimento trágico em relação ao ato paradoxal e à vítima ausente. No teatro de Müller, os mortos e mutilados são a mais universal das produções humanas, e neles reside uma parcela de futuro. Müller considerava reducionismo a linguagem se fundar em "resultados de pensamento". Lia literalmente a frase de Brecht: "São os defeitos estéticos que garantem a duração de uma obra". Por viver em outro contexto, ele não compreendeu que as estratégias de êxito de Brecht em sua procura de uma obra mais-que-perfeita também eram uma forma de eficácia. E o mesmo juízo aplicou a Chaplin: em ambos valorizou o sexto sentido para a maldade e repudiou a boa consciência humanista. Estranhamento Quando lemos sua adaptação de "Macbeth" -o maior dos tratados sobre o Mal-, temos a sensação de que Shakespeare não foi, como ele queria, seu antídoto contra Brecht. As intervenções no original resvalam na moralização que ele tanto temia e até por isso têm a virtude de intensificar a violência irracional que atinge os mais fracos. Na tentativa de lançar o espanto sobre os novos problemas sociais, Müller retoma a atitude filosófica que Brecht chamou de estranhamento. O método de sua lucidez desconcertante é de ordem dialética, na melhor tradição da arte anticapitalista. Não foi o racionalismo que tornou a esquerda despreparada para lidar com a reação irracionalista nem a falta de um sentido de tragédia. Foi a insuficiência das forças materiais e a precariedade do uso da razão, e nisso estou de acordo com o médico comunista Juarez Ricardo: o riso é uma grande ferramenta do pensamento, desde que se saiba de quem se está rindo -e com quem. Sérgio de Carvalho é dramaturgo, diretor integrante da Companhia do Latão e professor de arte cênica na Universidade Estadual da Campinas. Heiner Müller - O Espanto no Teatro 200 págs., R$ 26 Ingrid Dormien Koudela (org.). Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, SP, tel. 0/xx/ 11/3885-8388). Texto Anterior: + cultura: O conflito entre harmonia e invenção Próximo Texto: Lançamentos Índice |
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