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+ história
Combinação de dados é suficiente para tornar seletiva a memória e fazê-la oscilar entre o bem e o mal
A LANCHEIRA E O BOMBARDEIRO
Eriko Sugita - 5.ago.2002/Reuters
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Visitantes do Museu de Hiroshima observam foto da explosão da bomba atômica em 1945 |
Tzvetan Todorov
especial para a Folha
Cada aniversário dos bombardeios em Hiroshima e Nagasaki,
ao fim da Segunda Guerra, nos
lembra que a memória não é moralmente neutra. Ela se inclina para o
bem ou para o mal, e quatro perspectivas
básicas moldam poderosamente toda
narrativa histórica: o benfeitor ou seu beneficiário e o malfeitor ou sua vítima.
Ser o beneficiário de uma ação é menos
glorioso do que ser o benfeitor, porque
sugere impotência e dependência. Mas
ser a vítima de um crime é evidentemente mais respeitável do que ser o criminoso. E, embora ninguém queira ser uma
vítima, muitas pessoas hoje querem ter
sido uma vítima: elas aspiram ao status
de vítima.
A condição de vítima confere o direito
a queixar-se, protestar e exigir. É mais interessante conservar o papel de vítima,
ao invés de receber reparação. Ao invés
de uma única satisfação, se mantém um
privilégio permanente.
O que é verdadeiro sobre os indivíduos
o é ainda mais sobre grupos. Se se puder
mostrar de maneira convincente que um
grupo foi vítima de uma injustiça, o grupo em questão obtém uma linha de crédito moral infinita. Quanto maior o crime no passado, mais prementes os direitos no presente -que são conquistados
apenas por meio da afiliação ao grupo
prejudicado.
É claro que hoje reconhecemos de maneira mais clara que nunca que a história
sempre foi escrita pelos vitoriosos, o que
nas últimas décadas deu origem a frequentes reivindicações de que se escreva
a história das vítimas e dos derrotados,
pelo menos ao lado da dos vitoriosos. Essa é uma reivindicação absolutamente
legítima, porque nos convida a nos familiarizar com um passado antes ignorado.
No entanto falar em nome das vítimas
não traz um mérito ético adicional.
Na verdade, não se pode extrair benefício moral da evocação do passado se deixarmos de perceber as falhas ou erros de
nosso grupo. Mas é problemático fazer
isso. Por exemplo, em 1995 o Instituto
Smithsonian, em Washington, tentou
rever o Enola Gay, o avião que despejou a
bomba atômica em Hiroshima.
Pontos de vista
John Dower, historiador americano e especialista em Japão
moderno, estudou profundamente o assunto. Ele demonstrou como a história
pode ser apresentada e avaliada de modos totalmente diferentes: de um ponto
de vista americano ou japonês, mesmo
que nenhum deles esteja inventando fatos ou falseando fontes. A seleção e a
combinação dos dados é suficiente.
Para os americanos, havia "uma narrativa heróica ou triunfal em que as bombas atômicas representam o golpe final
contra um inimigo agressivo, fanático e
selvagem". Da perspectiva japonesa, havia um "relato de vitimização", em que
"as bombas atômicas tornaram-se o
símbolo de um tipo específico de sofrimento -muito semelhante ao Holocausto para os judeus".
No próprio Museu de Hiroshima o papel de vítima foi explorado de maneiras
que distorcem a memória de forma semelhante. Nem a responsabilidade do
governo japonês por ter iniciado e continuado a guerra nem o tratamento desumano que os prisioneiros de guerra e as
populações civis dominadas sofreram
sob o domínio japonês são adequadamente reconhecidos.
Cada um escolhe o ponto de vista que
lhe convém. Quer nos identifiquemos
com os heróis ou com as vítimas, com os
pilotos do avião que pôs fim à Segunda
Guerra Mundial ou com a população
passiva submetida ao inferno da aniquilação atômica, estamos sempre do lado
dos "inocentes" e dos "bons sujeitos".
No Smithsonian, o Enola Gay teria um
papel central numa exposição que pretendia apresentar o bombardeio de Hiroshima em toda a sua complexidade.
No entanto, devido à pressão de diversos
grupos patrióticos americanos, a exposição foi cancelada por ser considerada
uma ofensa à memória. Ao deixar de
apresentar os americanos no papel de
benfeitores heróicos, ela sugeria que eles
foram responsáveis por um massacre
que não se poderia justificar totalmente.
Como seria uma narrativa do mal se o
autor se recusasse a identificar-se com o
herói ou com a vítima? A pesquisa de
Dower sobre as diferentes maneiras como os americanos e os japoneses lembram Hiroshima nos dá um bom exemplo. Ele pôde se identificar com ambos os
grupos: pertence a um deles e seu trabalho o tornou intimamente familiar ao
outro. O título que ele deu a sua versão
dos fatos, depois de experimentar "Hiroshima como vitimização" (o ponto de
vista japonês) e "Hiroshima como triunfo" (o ponto de vista americano), foi "Hiroshima como Tragédia".
Redenção impossível
Tragédia: a
palavra significa não apenas sofrimento
e desgraça, mas a impossibilidade de redenção. Seja qual for o caminho escolhido, em uma tragédia as lágrimas e a morte são decorrência inevitável. A causa das
forças aliadas era sem dúvida superior à
dos nazistas ou dos japoneses, e a guerra
contra eles foi justa e necessária. No entanto mesmo as guerras "justas" provocam tragédias que não podem ser desconsideradas levianamente sob a alegação de que foi o inimigo quem as sofreu.
A lancheira da criança de 12 anos que
explodiu em Hiroshima, preservada por
acaso, com seu arroz e vagens calcinados
pela explosão atômica, pesa tanto em
nossa consciência quanto o Enola Gay.
Na verdade, foi a exibição da lancheira,
entre os artefatos que o Museu de Hiroshima emprestou à instituição americana,
que tornou a exposição inaceitável para
os antigos "heróis".
Somente se reunirmos coragem para
ver o bombardeiro e a lancheira ao mesmo tempo será possível apreender a trágica visão da história que Hiroshima
-assim como outros episódios que
marcam nossa consciência moderna-
claramente representa.
Tzvetan Todorov é diretor de pesquisa do Centro
Nacional da Pesquisa Científica (CNRS), em Paris, e
autor de "Memória do Mal, Tentação do Bem" (ed.
Arx) e "A Conquista da América" (Martins Fontes),
entre outros livros. Copyright: "Project Syndicate".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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