São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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+trecho

Método como miragem

Colocamos casas para serem preenchidas = uma tópica (grade de lugares). Que cada um as preencha; jogo coletivo: puzzle. Eu sou o fabricante (o artesão) que corta a madeira. Vocês são os jogadores. Princípio da não-exaustividade. Irei mais longe (talvez para me inocentar). O curso ideal seria talvez aquele em que o professor -o locutor- fosse mais banal do que seus ouvintes, no qual aquilo que ele diz fosse menos do que aquilo que ele suscita. Se o curso é uma sinfonia de propostas, a proposta deve ser incompleta, caso contrário é uma posição, uma ocupação fálica do espaço ideal. O sonho: uma espécie de banalidade não-opressiva, arejada. Ou uma vaga alegoria: o Viver-Junto. Toques sucessivos: uma gota disso, um brilho daquilo. Enquanto a coisa está se fazendo, não se compreende aonde ela vai: cf. em pintura: o tachismo, o divisionismo (Seurat), o pontilhismo. Justapõem-se as cores sobre a tela em vez de misturá-las na paleta. Eu justaponho as figuras na sala de aula, em vez de misturá-las em casa, à minha mesa. A diferença é que aqui não há um quadro final: na melhor das hipóteses, caberia a vocês fazê-lo.
[...]
Esta nova retórica (do não-método): direito ilimitado à digressão. Poderíamos até imaginar, tendenciosamente, uma obra, um curso, que seria feito apenas de digressões, a partir de um título fictício: o assunto (a questio) seria destruído pela astúcia de uma fuga incessante. Cf. as "Variações Diabelli": o tema é quase inexistente, uma vaga lembrança que atravessa, por relâmpagos, as 32 variações, cada uma sendo, assim, uma digressão absoluta em relação a ele
[...]
Eu disse no início: não-método. Como sempre, o "não" é demasiadamente simples. É como se eu preparasse materiais destinados a um tratamento metódico. Como se, na verdade, eu não me inquietasse com o método que a eles se aplicaria. Tudo é possível: desses materiais, a psicanálise, a semiologia, a crítica ideológica poderiam servir-se -o que dispensou a apresentação desses materiais de ser ela mesma psicanalítica, semiológica, política. Entretanto, e é aqui que desejo terminar, essa preparação de método é infinita, infinitamente expansiva. É uma preparação cuja realização final é sempre adiada. O método só é aceitável a título de miragem: ele é da ordem do Mais tarde. Todo trabalho é assim assumido como sendo animado pelo Mais tarde. O Homem entre o Nunca mais e o Mais tarde. Não existe presente: é um tempo impossível.


Roland Barthes, "Como Viver Junto".
Trechos traduzidos por Leyla Perrone-Moisés.



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