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O SENSO COMUM E O AVESSO DA HISTÓRIA
Em "O Homem Duplicado", José Saramago lança mão do humor cético e do absurdo para captar os sinais ideológicos do presente
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O Homem Duplicado
320 págs., R$ 36,00
de José Saramago. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/11/3167-0801).
Aurora Fornoni Bernardini
especial para a Folha
Para explicar por que um bom escritor é como um bom vinho, que
vai ficando melhor à medida que
envelhece, não basta apelar para o
"Senso Comum", um dos personagens
do octogenário Saramago em sua nova
obra, "O Homem Duplicado", ao qual
por sinal não são poupadas críticas ("o
papel do senso comum na história da
vossa espécie nunca foi além de aconselhar cautela e caldos de galinha, principalmente nos casos em que a estupidez já
tomou a palavra e ameaça tomar as rédeas da ação"; "o senso comum é demasiado comum para ser realmente senso,
no fundo não passa de um capítulo da estatística, e o mais vulgarizado de todos").
Mas, neste bem escrito romance de
suspense com matizes psicofilosóficos
sobre o duplo (não chega a configurar-se
como "o outro", como quer José Saramago, nem incorpora o "mistério" e o
"terror" de seus antecessores famosos),
são tantas as soluções felizes que encontramos e os "sinais ideológicos" de nossa
era, captados e como que desmitificados
pelo autor, que vale a pena apontar alguns deles e ver como se estruturam (e se
desestruturam).
De frente para trás
Entre os nomes, os ditos, os provérbios, tomados e
retomados com jocosa mestria, Tertuliano (o nome do professor de história, personagem principal do livro) está pela frase que caracteriza seu mais famoso portador, o filósofo pagão e antiintelectualista do século 2º, convertido ao cristianismo, que disse "acredito porque é absurdo", mas também por ter este sugerido ao professor o ensino da história "de
frente para trás": a frente da história sendo o eterno presente, o futuro, um imenso vazio imperscrutável, e o absurdo entrando no romance não tanto como a
realidade da existência de um duplicado
ou clone -ou pelo final, que lembra o de
"O Capote", de Gógol-, mas como contraponto das coisas mais simples e de alcance universal, como a força dos contrários ou sua relatividade ou as admoestações que enriquecem a obra, como a de
não confiar no destino, por exemplo,
quase tão malhado quanto o senso comum: "Nunca jogues as pêras com o destino, que ele come as maduras e dá-te as
verdes".
O apelido de Cassandra, dado a Carolina, a mãe do protagonista, está pelos
conselhos ("estejas atento aos relinchos") e pelo presságio do "incêndio de
Tróia" que ameaça o filho; Helena, a mulher do sósia, está, como a Helena de Homero, pelo próprio incêndio de Tróia (o
que irá acontecer), e Maria da Paz, a namorada de Tertuliano Máximo Afonso,
pela capacidade de entender as coisas
com clareza e tranquilidade.
A ela é atribuída a frase "o caos é uma
ordem por decifrar dentro de si mesmo",
com a ressalva contraditória de que sempre, porém, "sobram pontas para atar".
(Não se trata de "grandes verdades", obviamente, mas uma das "mensagens" do
livro parece estar mesmo nas ressalvas
que contradizem os enunciados.)
Em geral, no romance, as mulheres exibem maior segurança que os homens,
por se deixarem guiar não tanto pela
"energia paradoxal da alma humana" e
pela sobreposição e confusão de sentimentos que costumam reger os homens,
quanto pela sensibilidade e emoção, que
indicam o meio de escapar, por enquanto, à condição de "inanimal" para a qual
nos encaminhamos. (Outra mensagem.)
Ironias machadianas
Entretanto,
porém, "enquanto o pau vai e vem, como
dantes diziam os já mencionados rústicos, querendo crer que no brevíssimo intervalo entre o ir e o vir do cacete tinham
as costas tempo de folgar, Tertuliano
Máximo Afonso dirige-se à loja dos vídeos, um dos muitos destinos intermédios que o esperam na vida". A rotina do
professor Tertuliano Máximo Afonso,
que vai alugar um vídeo para espairecer a
"temporal fraqueza de ânimo ordinariamente conhecida por depressão" e aí encontra um ator secundário que é seu
igual, acaba nos prendendo numa rede
de alusões/digressões/ máximas e nos
envolvendo no estilo irônico e arguto
deste último Saramago, muito próximo
ao de Machado de Assis, não fora pelo
tom mais desencantado e por certas (raras) intromissões desconstrucionistas do
narrador, que, enfraquecendo o suspense ("o certo, e isto sim podemos já antecipá-lo, é que o professor Tertuliano Máximo Afonso não voltará a entrar numa sala de aula em toda a sua vida"), lembram o Umberto Eco de "A Ilha do Dia
Anterior". Todas essas figuras, ao mesmo tempo em que vão criando a identidade do protagonista, vão, sem pedantismo, dando indícios da personalidade
do narrador.
Mal nos é dado o tempo de ficarmos
cativados por essas personagens obscuras, seus subgestos e subtons, suas oscilações e silêncios eloquentes ("silêncios
eloquentes são apenas palavras que ficaram atravessadas na garganta, palavras engasgadas que não puderam escapar ao aperto da glote"), quando eis
que, numa onda de pânico, vem o diabo
atacar "os pontos desguarnecidos,
consciente ou inconscientemente". O
papel do suspense é restabelecido, as
aparências adquirem maior ambiguidade, o princípio da coincidência se intromete nos acontecimentos, palavras
que abririam as derradeiras portas não
são ditas, os signos ideológicos confundem-se com os signos da fatalidade, ressurge a presciência. A morte sempre vem
a propósito, atraída que é pela fraqueza
moral e pelas palavras que dão nome ao
instinto que cega: "desforra, desforço,
despique, desagravo, desafronta, represália, rancor, vindicta, senão mesmo a
pior de todas, ódio".
À margem dos sentimentos
Mas
as palavras, embora fiquem à margem
dos sentimentos, "são tudo quanto temos", e, num final que lembra o pirandelliano "O Finado Mattia Pascal", descobre-se -quem diria- que foi justamente a falta do tão vilipendiado senso
comum -que "nem sempre aparece
quando é necessário, não sendo poucas
as vezes em que de uma sua ausência
momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras"-
o actante que semeou os equívocos e
provocou os desenlaces.
Escusado dizer que a graça deste último Saramago não deve ser procurada
tanto nos emaranhados do enredo ou na
escavação das personagens quanto nos
fatos da linguagem: figuras bem articuladas, diálogos em lugar das descrições dos
livros anteriores e certo humor cético,
mais leve, que entretém e diverte.
Aurora Fornoni Bernardini é professora de
pós-graduação em teoria literária e literatura
comparada da USP, tradutora e autora de "O Futurismo Italiano" (ed. Perspectiva), entre outros.
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