São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002 |
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+ livros Estudos recém-lançados analisam as formas de governo modernas à luz do capitalismo pós-industrial e das novas mídias Gramáticas da democracia
O Arsenal da Democracia
Newton Bignotto
Nas últimas décadas formou-se
em boa parte dos países do
Ocidente o consenso de que a
democracia é o único regime
adaptado às demandas do mundo moderno. Esse acordo quanto ao melhor regime não significou, no entanto, que haja
sempre concordância quanto ao significado de seus valores básicos e sobre o
funcionamento de suas instituições. Embora grandes teóricos como Claude Lefort, Habermas e Rawls tenham dado
contribuições decisivas nesse campo, é
da natureza da democracia colocar-se
constantemente em questão.
O livro de Bovero e o organizado por
Bertrand fazem parte desse saudável esforço de continuar a investigar o funcionamento e os conceitos associados a
uma forma de governo que não pode
abrir mão da liberdade de pensamento e
de expressão, se quiser se afirmar como a
melhor opção para o nosso tempo.
Discípulo e amigo de Norberto Bobbio,
provavelmente o mais conhecido filósofo político italiano da atualidade, Bovero
se dedica em seu livro a deslindar os
principais problemas enfrentados pelos
que pensam a democracia na atualidade,
sobretudo quando está em questão o que
ele chama de gramática da vida democrática. O que o livro tem de melhor é
justamente o fato de que o autor é capaz
de expor com clareza tanto a origem de
conceitos como igualdade e liberdade,
princípios essenciais da vida política em
uma democracia, quanto os impasses
enfrentados para a sua efetivação em sociedades capitalistas pós-industriais.
Ao visitar a tradição conceitual, Bovero
dissolve certos equívocos comuns sobre
o significado de conceitos como o de cidadania, que, segundo ele, teria se tornado muito restritivo na acepção de Marshall, que reduziria seu alcance ao território político dos cidadãos, vistos como os
membros de direito de uma comunidade
política estruturada por normas constitucionais. De maneira generosa, o autor
se pergunta se essa restrição conceitual
não teria por resultado justamente o esquecimento do fato de que "a liberdade
individual, no mundo moderno, não depende da pertença à comunidade, aliás a
precede e condiciona". Com isso o problema dos imigrantes, por exemplo, que
vivem em situação precária em muitos
países do Ocidente, poderia receber um
tratamento que lhes é negado pela constituição de boa parte dos regimes livres.
A análise de Bovero o leva a tomar posição contra autores como Hayek, que,
mesmo se situando no campo democrático, exacerbam a defesa do livre mercado a ponto de colocar em risco a própria
democracia, em favor de uma competição desmedida entre seus integrantes.
No confronto com seus pares, ele mostra que a concepção que lhe parece correta de democracia é aquela defendida por
Kelsen e Bobbio. O núcleo de sua escolha
desses autores como referência maior
pode ser inferido a partir da afirmação
de que a "democracia é formal por definição". Ao acentuar o aspecto processual
necessário para a consolidação da vida
democrática, o autor afirma que a esse
primeiro ponto é preciso acrescentar a
defesa das "quatro liberdades dos modernos -liberdade pessoal, de opinião,
de reunião e associação".
Se não há como negar o caráter salutar
da posição do autor, sobretudo no confronto que estabelece com as doutrinas
do "puro mercado", é preciso notar que
Bovero dá pouca importância às críticas
que já foram dirigidas a Kelsen, que, ao
erigir a "norma jurídica" e os processos
formais de sua validação em centro da
vida das sociedades políticas, acaba por
esvaziar a discussão sobre a formação do
aparato constitucional das nações de seu
conteúdo propriamente político. O leitor
pode medir os riscos de tal posição lendo
uma afirmação de Bobbio em um livro
recente escrito em comum com Maurizio Viroli ("Diálogo em Torno da República", ed. Campus, pág. 30).
Ao referir-se à sua atividade como professor, Bobbio afirma: "Eu ensinava com
uma certa frieza, com um certo distanciamento. Um dos autores que eu mais
gostava de usar em minhas aulas era Kelsen, que evita os juízos de valor e constrói o sistema jurídico como um sistema
normativo que pode ser preenchido por
qualquer conteúdo. A teoria pura do direito pode ser aplicada seja na União Soviética, seja nos EUA; seja em um sistema
totalitário, seja em um sistema democrático". Ora, uma concepção de democracia que não nos capacita a escolher valores, que rejeita sem ambiguidades os regimes ditatoriais e totalitários, corre o
risco de se transformar num exercício intelectual sofisticado, mas impotente para
nos guiar nos embates verdadeiramente
importantes da vida em sociedade.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, autor de "Origens do Republicanismo Moderno" (UFMG). Texto Anterior: + livros: O SENSO COMUM E O AVESSO DA HISTÓRIA Próximo Texto: A grande confusão das línguas Índice |
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