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Em "Torres de Babel", Jacques Derrida repensa os problemas
da tradução a partir de um ensaio de Walter Benjamin
A grande confusão das línguas
Torres de Babel
74 págs., R$ 18,00
de Jacques Derrida. Trad. Junia Barreto. Ed. UFMG
(av. Antonio Carlos, 6627, Belo Horizonte, MG,
CEP 31270-901, tel. 0/xx/31/3499-4650).
Sérgio Telles
especial para a Folha
"Torres de Babel", ensaio de Derrida
datado de 1987 e agora aqui traduzido, tem como tema central a tradução. Em vez de se contentar
com o corriqueiro "traduttore, traditore", que condensa os impasses inerentes
à tradução, Derrida aborda a questão
bem a seu estilo.
Mais uma vez, seguimos os tortuosos
caminhos de seu pensamento, que a cada
volta surpreende e encanta o leitor com
sua complexa sutileza, mas só se ele (o
leitor) estiver atento. Caso contrário, logo ficará perdido no labirinto das longas
frases, cheias de parágrafos digressivos,
parênteses pretensamente esclarecedores, comentários, adiamentos, adiantamentos e ilustrações.
"Torres de Babel" é uma paráfrase de
Derrida sobre o famoso ensaio de Walter
Benjamin (1892-1940) que aborda a tradução, "A Tarefa do Tradutor" ("Die
Aufgabe des Übersetzers"), texto que ele,
Derrida, por sua vez, lê numa tradução,
realizada por seu mestre Maurice de
Gandillac.
É interessante lembrar que o próprio
texto de Benjamin é, por sua vez, o prefácio de uma tradução por ele feita dos
"Quadros Parisienses" de Baudelaire. Está montado então um jogo de espelhos
linguísticos, a refletir infinitamente o
enigma das línguas.
Arrogância e soberba
O livro abre
com o trecho bíblico sobre a Torre de Babel. Ali está escrito que, naquela ocasião,
os homens planejavam a construção de
uma torre com a qual chegariam aos
céus, marcando uma cidade que os uniria e protegeria para sempre, evitando
sua dispersão pela face da terra. Ao mesmo tempo, com isso, se fariam um nome. Esse projeto não agradou a Deus,
que o interpretou como fruto da arrogância e da soberba dos homens, desafiando-o em sua posição de criador supremo.
Deus então raivosamente "clama seu
nome: Babel, Confusão", o que estabelece a diversificação das línguas, impede a
consecução do projeto, provoca a dispersão dos homens e a incompreensão
entre eles, fadando-os à necessidade da
tradução.
Ao projeto humano, que visava a racionalidade de uma comunicação clara e direta entre os homens, Deus impõe a sua
própria língua, que, fragmentada numa
miríade de línguas humanas, será para
sempre estranha e estrangeira aos homens, que estarão condenados a uma comunicação falha e incompleta, necessitada permanentemente de tradução.
Dos trechos pinçados por Derrida do
ensaio de Benjamin, o mais importante é
aquele em que se estabelece o vínculo entre a linguagem dita "pura" e a "verdade", proposição derivada de um texto de
Mallarmé que Benjamin, significativamente, cita em francês, sem traduzi-lo
para o alemão, língua na qual escrevia
seu texto.
A atenção à forma
Para Benjamin,
a tarefa do tradutor não é a recepção, a
comunicação ou representação do original. Ele deve centrar seu interesse sobre a
forma, coisa que fica patente sempre que
se tenta traduzir textos sagrados ou poéticos. A tarefa do tradutor é "fazer amadurecer a semente de uma linguagem
pura".
Essa "linguagem pura" remete à mítica
língua primeira, originária, da qual todas
teriam derivado e que garantiria o parentesco essencial entre todas elas. É a portadora da depurada verdade. É a língua de
Deus, que, ao se impor em Babel, o fez
para "deixar entender que é difícil traduzi-lo e assim entendê-lo".
Todo original importante "suporta" e
"exige" uma tradução por ser portador
de um fragmento dessa "linguagem pura". Cabe ao tradutor captar esse fragmento, essa "semente de linguagem pura", e produzi-lo em sua própria língua.
Se as línguas se aproximam e tendem a
uma linguagem maior, "pura", que expressaria a "verdade", também acontece
que elas se afastam. Há algo intocável e
intransferível na passagem de uma para
outra, visível na absoluta singularidade
com que cada língua expressa seus conteúdos. É isso que marca a diferença entre o original e a tradução.
O fruto e seu invólucro
No original, diz Benjamin, está o "caroço", o núcleo duro que permite a tradução, a reprodução. Ali, teor e linguagem formam
uma unidade coesa "como a do fruto e
seu invólucro". Já a tradução "envelopa
seu teor como um manto real de largas
dobras". Enquanto no original há uma
natural harmonia e integração entre teor
e língua, na tradução há uma solene e severa sobreposição de uma língua sobre o
teor que precisa ser mostrado, ele é envolto por um "manto real", que representa a autoridade do simbólico, mas jamais terá a naturalidade que somente o
original possui.
A relação entre original e tradução tem
consequências jurídicas sobre direitos
autorais que estabelecem a legitimidade
das traduções, que até lhes reconhece
uma parcela de originalidade e trabalho
autoral.
Embora o texto faça muitas referências
ao sagrado e à palavra de Deus, isso não
deve ser confundido com qualquer posição religiosa ou mística. A "palavra de
Deus" é aquela primeira, instauradora
da estranheza e da impossibilidade de
entendimento direto, a que impõe a tradução, mas que também evoca uma inefável e fugidia verdade, lugar ideal onde
"a letra não se dissocia do sentido", onde
se borrariam as diferenças entre original
e tradução.
O "nome de Deus" aqui evoca a nostalgia diante do próprio mistério indecifrável da existência das línguas. Afinal, o
que querem elas dizer? O única coisa que
podemos constatar é que elas querem
simbolizar, representar.
O enigma da origem
Mais ainda, o
"nome de Deus" é uma metáfora na própria língua para representar o enigma da
origem de tudo -nosso anseio de paternidade, nós, pobres homens órfãos, confrontados com a irreconciliável antinomia das palavras com as coisas, condenados à tarefa de simbolizar. Somos todos "tradutores".
Os grandes originais são portadores de
fragmentos da "linguagem pura" e da
"verdade", não por expressarem revelações sagradas ou divinas, mas por apontarem profundas verdades humanas, intuídas e buriladas por seus autores e
prontamente reconhecidas pelos seus
leitores.
Reconhecendo a importância fundamental da "tarefa do tradutor", Walter
Benjamin e Jacques Derrida talvez ofereçam algum consolo a essa sofrida classe,
quase impedida de exercer com dignidade a sua profissão pelo aviltamento da
má remuneração.
O problema da tradução necessariamente interessa, também, aos psicanalistas. Ao interpretar e construir, os psicanalistas estão sempre fazendo traduções
do inconsciente para o consciente, tarefa
ainda mais complicada e comprometida
do que a do tradutor de línguas, tal como
vista por Benjamin e comentada por
Derrida.
O texto a ser traduzido pelo analista
prima pela ausência, pelo negativo. É
apreendido nas entrelinhas, nos lapsos,
nos erros. É um discurso em permanente
latência.
Sérgio Telles é psicanalista e escritor, membro do
departamento de psicanálise do Instituto Sedes
Sapientiae. É autor de "Peixe de Bicicleta" (editora
da Univesidade Federal de São Carlos).
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