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Ponto de fuga
Conto de fadas
No início do século passado, as vanguardas artísticas
efervesceram em criações experimentais. O refluxo veio
após a crise econômica de 1929, chamado de "retorno à
ordem". Com a depressão, com a subida dos governos
totalitários, houve um assentamento nos projetos dos
artistas. Serenados, eles buscaram reatar com as tradições, preferindo os tons confidenciais e introspectivos
aos fogos de artifício das novidades ousadas. A trajetória de três cineastas atuais sugere que um fenômeno semelhante pode estar ocorrendo.
John Woo abandona a coreografia barroca das lutas, o
vôo gráfico dos pássaros e dos projéteis, em nome de
uma ordenação nas batalhas de "Códigos de Guerra"
("Windtalkers") e de tensões internas aos personagens.
David Cronenberg deixa de lado o seu fascínio pelas vísceras expostas, pelas aberrações orgânicas, pelos monstros nojentos, ao realizar "Spider", filme centrado na direção de ator e no clima deletério da Londres suburbana. Pedro Almodóvar se acalma, esquecendo as cores
plastificadas com as quais fabricava um inenarrável pop
espanhol, em que o erotismo provocador jogava com
formas malucas de transexualismo e com o humor mais
escrachado. Troca a ironia ferina por uma atmosfera
generosa.
Em "Fale com Ela" ("Hable con Ella"), traz uma versão pós-pós-moderna de uma bela adormecida em coma na clínica "El Bosque". É um filme não sobre paixão
fulgurante, espetacular, cheia de gestos e juras. Em vez
disso, explora os modos misteriosos do amor, duradouros, silenciosos e pacientes.
Quietude - Três cineastas: não é muito como amostragem, mas Woo, Cronenberg, Almodóvar são tão originais e diversos que a virada comum em direção a um cinema de tons baixos e matizes delicados talvez não seja
apenas casual.
A qualidade não decaiu; são, todos os três, filmes extraordinários. Prolongam as antigas obsessões desses
diretores: apenas, elas são vazadas em moldes mais coesos e estritos. "Fale com Ela", de Almodóvar, retoma a
troca de papéis sexuais, mas em deslocamentos leves.
Uma mulher exerce a profissão de toureiro, tão marcadamente masculina; um homem evolui com desenvoltura no meio feminino, é enfermeiro, cabeleireiro, manicuro. O macho, galã da história, chora sem parar (Almodóvar disse, numa entrevista, que gostaria de ter visto John Wayne em lágrimas). Tudo isso se encontra
longe dos travestis desvairados, do sadomasoquismo
hilariante, de ninfomaníacas e freiras dissidentes, do
grotesco à beira de um ataque de nervos. Ainda assim,
"Fale com Ela" herda essas inquietações sexuais, para
dispô-las, discretas, dentro dos afetos amorosos.
O momento mais delirante surge distanciado, transposto para um filme dentro do filme, uma pseudoprodução do cinema mudo. Esse filme no filme é a metáfora para um estupro necrofílico, que, por sua vez, equivale ao beijo trazido pelo príncipe encantado, capaz de
acordar a bela adormecida.
Cama - No filme mudo de "Fale com Ela", a imagem da
enorme vagina penetrada por um homem minúsculo
retoma "Salto Mortal" (1902), um desenho do austríaco
Alfred Kubin. Outro artista, Gustave Courbet, pintor
francês do século 19, dispunha, em seus quadros, mulheres dormindo. A tela intitulada "O Sono" mostra
uma loira e uma morena, admiráveis e monumentais,
enlaçadas sobre os lençóis. São prazeres femininos, cujo
conhecimento verdadeiro escapa aos homens. Um outro de seus quadros, "A Origem do Mundo", representa
uma vagina. Como "Fale com Ela", as obras de Courbet
supõem o fascínio dos homens diante dos enigmas femininos, físicos e imateriais. O cérebro das mulheres é
um mistério, diz o filme. Nem o cineasta nem o pintor
tentam compreendê-lo; quedam antes em contemplação perplexa diante dos belos corpos imóveis.
Vizinho - "O Filho da Noiva", filme argentino, é cinema
de fato, comovente e bem-humorado ao mesmo tempo.
Não parte, por felicidade, de grandes ambições intelectuais ou poéticas. Vai aos poucos, contando uma história bem tramada, com atores extraordinários. A direção
de Juan José Campanella é justa, sensível, sem excesso,
sem bisonharia.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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