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+ brasil 505 d.C.
Embora diferentes, campos de concentração nazista e soviético têm
em comum a desumanização
do indivíduo
As duas faces do totalitarismo
Boris Fausto
Ao longo de muitas décadas, estudos comparativos entre personagens ou instituições da Alemanha
nazista e da União Soviética foram
encarados quase como um escândalo. A
razão, em poucas palavras, seria a suposta
natureza intrinsecamente diferente dos
dois regimes. A constatação é particularmente verdadeira no que se refere aos intelectuais de esquerda. A tentativa de enquadrar os dois casos sob o rótulo de totalitarismo pareceria um ardil ideológico que
tomaria como relevantes alguns traços superestruturais, com o objetivo de ocultar
estruturas básicas antagônicas: de um lado, o capitalismo na sua última fase de degenerescência; de outro, a fase de transição
para o socialismo.
Mesmo nos círculos liberais, havia uma
tendência a não enxergar ou a minimizar
os aspectos mais tenebrosos da ditadura
soviética, assumindo a teoria de que os fins
justificam os meios. Desse modo, exemplificando, os expurgos em massa dos anos
de 1930, empreendidos por Stálin, seriam
lamentáveis, mas de certa forma escusados, ao se ter em conta os êxitos da industrialização soviética.
Uma brilhante exceção é Hannah
Arendt. Em "Origens do Totalitarismo"
(1951, publicado no Brasil pela Cia. das Letras), ela distingue o totalitarismo como
uma categoria específica, distinta das aplicáveis a outros regimes ditatoriais, e engloba nessa categoria os regimes nazista e comunista, sem deixar de acentuar as diferenças. Se a repercussão de sua obra foi
ampla, também foram amplas as críticas e
as distorções de seu pensamento.
São várias as razões para a resistência a
enxergar de frente o que foi o sistema soviético. Dentre elas, lembremos que ele se
assentou e se justificou a partir de uma
ideologia universalista aparentemente generosa. Inserindo-se na trilha do sonho
igualitário que percorre a história da humanidade, o marxismo-leninismo se apresentou como uma doutrina científica que
tinha a chave da futura sociedade sem classes. Mesmo para quem não aderia a várias
de suas formulações -a ditadura do proletariado, por exemplo-, a aura humanista acompanhou o regime soviético. Ela não
se impôs, é certo, automaticamente, pois
foi orquestrada por Moscou, utilizando os
partidos comunistas; seja como for, os
sons da orquestra tinha ouvidos propensos a escutá-los.
Ao contrário, a ideologia nazista foi exposta claramente por Hitler, no "Mein
Kampf" [Minha Luta], como instrumento
a serviço de uma raça superior -os alemães de sangue ariano. A humanidade era
uma categoria concreta desprezível que
abrangia raças inferiores, como os eslavos,
ou, pior ainda, uma escumalha de judeus,
ciganos e outros seres subumanos.
A invasão da União Soviética pela Alemanha, no curso da Segunda Guerra Mundial, contribuiu também para encobrir a
marca totalitária do sistema soviético, tanto mais que a determinação de Stálin e de
alguns de seus generais (Zukov, Timoshenko etc.) e, sobretudo, a resistência do
povo russo foram fatores essenciais para a
derrota do nazismo.
Ser e fazer
Em anos mais recentes, o
quadro intelectual mudou radicalmente.
Mais ainda, com a abertura dos arquivos
do período soviético, foi possível ir a fundo
no conhecimento de fatos e instituições
daqueles anos, como é o caso dos gulags
-rótulo genérico dos campos de trabalho
forçado da União Soviética. Ao mesmo
tempo, multiplicaram-se as comparações
entre os regimes nazista e comunista.
Na introdução de seu excelente livro
"Gulag - A History of the Soviet Concentration Camps" [Gulag - Uma História dos
Campos de Concentração Soviéticos,
2003), a jornalista Anne Applebaum faz algumas referências comparativas sobre os
dois sistemas concentracionários, marcando aproximações e diferenças. Em primeiro lugar, uma identidade básica. Os campos de concentração foram criados para
encarcerar e liqüidar pessoas não pelo que
elas tenham feito, mas pelo que elas eram,
embora em um e outro caso prisioneiros
políticos fossem internados minoritariamente, por vezes, em campos específicos.
No caso da Alemanha, a raça representava
o fator decisivo; no da União Soviética,
predominava a ampla categoria dos "inimigos do povo". Como disse Stálin, "um
Inimigo do Povo não é apenas alguém que
pratica sabotagem, mas alguém que duvida da linha do Partido".
A partir daí, são muitas as diferenças. Em
primeiro lugar, as balizas cronológicas. Os
campos nazistas nasceram e morreram
com o regime (1933-1945), tendo pois um
curto e mortífero período de existência. Os
soviéticos existiram desde 1921 até os primeiros anos da década de 1980, essas datas
indicando que eles não foram um produto
do stalinismo, embora Stálin tenha sido
seu promotor mais sinistro.
Outro aspecto distintivo refere-se aos
objetivos dos campos. No caso do nazismo, predominaram os objetivos ideológicos de extermínio, a curtíssimo ou a médio
prazo, a tal ponto que trens carregados de
vítimas chegaram a ter preferência sobre
outros que transportavam mercadorias. Já
no caso soviético, o gulag teve sobretudo
objetivos econômicos. Applebaum afirma
que, no início dos anos 50, o trabalho forçado era responsável por um terço da produção de ouro do país, tendo um papel significativo na extração de madeira, nas minas de carvão e nas indústrias.
Uma discussão sobre o número de vítimas mostraria cifras impressionantes, conhecidas no que se refere à Alemanha e
bem menos no caso soviético. Segundo
Applebaum, entre 1929, quando os gulags
começaram sua maior expansão, até 1953
-ano da morte de Stálin- , algo em torno de 18 milhões de pessoas passaram pelo
sistema, sem falar nos 6 milhões de exilados para regiões desérticas ou para as florestas siberianas.
Vale a pena retornar, por último, a um
ponto comum, ou seja, o processo de desumanização das vítimas, por muitas formas,
entre elas sua desqualificação como "seres
imundos", "parasitas", "ratos", "vermes",
sua transformação em "animais" obrigados a assim se comportar.
Guardadas as proporções, esse processo
não traz à mente os "gusanos" de Fidel
Castro ou o que se passa nas prisões iraquianas, nos dias de hoje?
Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Cia. das
Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505
d.C." (depois de Cabral), do Mais!.
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