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+ brasil 505 d.C.
Conflitos atuais abolem os campos definidos de batalha
e fazem o inimigo brotar do próprio
uso dos objetos cotidianos
A fibrilação da guerra e da paz
José Arthur Giannotti
Noutro dia, relendo "O Sobrepujar da Metafísica", de Martin Heidegger, encontrei, no
fragmento 26, considerações
sobre as "guerras mundiais" que me
surpreenderam, principalmente vindas
de um pensador cujos vínculos com o
nazismo são notórios. Note-se que esses textos foram escritos entre 1936 e
1946, portanto, tendo como pano de
fundo o desastre da Segunda Guerra
Mundial. Heidegger, ao escrever entre
aspas o nome "guerras mundiais", parece querer indicar o caráter problemático dessa mundialização da guerra, o
que hoje, porém, não mais levanta dúvidas. Explica o aspecto totalitário do
conflito aplicando-lhe seu conhecido
esquema, segundo o qual a decadência
do Ocidente estaria ligada a suas próprias raízes gregas, àquele abandono,
pelo ser humano, das questões relativas
a seu próprio ser, ao modo pelo qual está no mundo.
Trocando em miúdos, as guerras se
tornariam totalitárias porque o homem
teria perdido o contato com a diversidade de seu modo de ser, de sorte que elas
tentariam salvar, como um fundo, uma
forma permanente em contraste com o
desgaste das coisas e das pessoas, tentando impor ao mundo uma unidade
que ele já não mais pode ter.
Nessa tentativa, ao enfrentar o consumo desgastante vigente na sociedade
contemporânea, os próprios homens se
revelam como "a mais importante das
matérias-primas", visto que se tornam
sujeitos a todo desgaste. Entregando-se
voluntária e inteiramente a ele, o homem se converte no "objeto" que continua renovando a perda de seu ser. Não
há como encontrar nessa alienação sua
autenticidade, a não ser trilhando o caminho da reafirmação da importância
do próprio ser do homem.
Mais do que o diagnóstico dos mal-estares da humanidade, interessa-me sua descrição. Deixemos de lado a dialética abstrata e quase tautológica para nos determos nas conseqüências que Heidegger dela retira, pensando o novo sentido que a
guerra assume entre nós. No final das contas, não é porque conclusões provêm de
premissas abstratas que perdem seu poder
descritivo. Além disso, elas mostram como
um pensador reacionário pode ter uma
percepção muito precisa, até mesmo premonitória, de um fenômeno que se manifestaria plenamente apenas anos depois.
Heidegger observa que as guerras mundiais regridem a uma forma indiferenciada, borrando a distinção precisa entre períodos de guerra e períodos de paz, isso
porque o ente, ao perder contato com o
ser, tende a transformar o "mundo" em
não-mundo. Há três idéias que parecem
preciosas nessa análise: essa indiferenciação entre a guerra e a paz; o mundo que
perde seu caráter globalizante de mundo;
por fim, o homem aparecendo como a
mais importante das matérias-primas por
causa de seu desgaste. Vale a pena desenvolvê-las de outro ponto de vista.
Adversário diabólico
A guerra e a
paz não mais são sucessivas, dois períodos
e duas experiências de tal forma encadeados que um começa quando o outro acaba.
A guerra tem sido uma constância na história humana, seja nas sociedades tribais,
onde se entranha na vida cotidiana, seja
nos últimos tempos do imperialismo, que
a exporta para a periferia do mundo capitalista. Mas atualmente a paz convive com
a espera, a premonição e prevenção de ataques internos às nações que se dizem em
paz. Nada mais natural que as mais desesperadas tentem desenhar, de um ponto de
vista teológico, o rosto de um adversário
informe e diabólico.
É bem verdade que, já na Segunda Guerra Mundial, os Exércitos atacaram a sociedade civil -o massacre de Guernica se
tornou exemplar e, aquele de Hiroshima,
seu limite máximo. Nas circunstâncias em
que toda a população se transformara no
suporte econômico do conflito, qualquer
pessoa vinha a ser um soldado dessa produção organizada para a guerra, de sorte
que os bombardeios se fizeram em nome
da necessidade de interromper os elos da
cadeia produtiva. Os Exércitos, porém,
continuavam lutando entre si, cada um
com marcas perfeitamente definidas.
Mas hoje o esforço produtivo para a
guerra se integrou de tal modo na sociedade capitalista que se torna impossível atacá-lo. O que se mostra cada vez mais frágil,
entretanto, passam a ser os nódulos dessa
enorme rede tecnológica que envolve o
mundo fundindo produção e consumo.
Nessas condições, a guerra se generaliza
mais do que se globaliza. Já a Guerra Fria
era uma paz em sursis, sempre ameaçada
pelo inferno atômico. Mas ainda havia nações em conflito. Mesmo na segunda metade do século 20, quando a guerrilha fez o
guerrilheiro se colar na pele do adversário,
os combates ainda se faziam pelo choque
das armas. Se essa forma de conflito ainda
se mantém nos países mais pobres, cabe
distingui-la do novo terrorismo, que abole
os campos definidos de batalha e faz o inimigo brotar do próprio uso dos objetos cotidianos. Quem poderia imaginar que um
avião civil pudesse ser transformado em
arma mortífera, tanto para seus ocupantes
como para os pacíficos moradores de um
edifício? Além do mais, as armas de destruição em massa não se filtram pelo ar,
pela água e pela alimentação?
Note-se que isso só foi possível porque o
desenvolvimento tecnológico junta peças
cujo elo pode ser facilmente transformado.
O hacker não ameaça redes de computadores nelas introduzindo vírus durante
seu pacífico funcionamento? É como se a
segunda natureza em que vivemos, dominada pela tecnologia, trouxesse em si mesma um potencial de destruição, como se as
catástrofes brutas da natureza primeira
pudessem ser projetadas para o mundo
tecnologicamente conformado. Não há
dúvida de que a internet também facilita
chamamentos políticos, como ocorreu nas
últimas eleições européias, principalmente
na Espanha, quando as mentiras do governo puderam ser desmentidas rapidamente
e grande parte da população pôde se manifestar na velocidade da luz. Mas todos sabemos que esse mesmo instrumento pode
converter-se para o mal. Não é por isso,
por exemplo, que o sistema financeiro
mundial trabalha tendo no horizonte a falência de seus computadores?
Não se trata tão-só daquela indiferença
moral da técnica, que, exclusivamente
orientada por uma razão calculadora, poderia ser usada para o bem ou para o mal.
A nova técnica se confunde com a ciência,
formando um corpo vivo que se diferencia
e se identifica, mas que vem sendo atravessado por um empuxo que o leva a um desenvolvimento sem fim e socialmente descontrolado. O atual desenvolvimento da
ciência é posto em razão da inovação tecnológica como fonte do desenvolvimento,
de sorte que tudo se regula pela vontade de
potência do capital.
O homem com qualidades
Conhecemos os efeitos devastadores desse desenvolvimento posto em razão de si mesmo:
destruição da natureza para todos e da própria natureza humana, nesse último caso,
conforme os indivíduos têm menos acesso
às benesses do desenvolvimento. Mas todos os indivíduos são socialmente definidos como descartáveis, quer pela ameaça
constante do emprego flexível e do desemprego, quer muitas vezes pela necessidade
de sobreviver nos interstícios do sistema.
Não se trata mais daquele homem unidimensional, que, a despeito de ser reduzido
a um gesto da cadeia produtiva, ainda se
mostrava socialmente necessário, nem
mesmo daquele homem sem qualidades,
semelhante a uma geléia amorfa.
O ser humano contemporâneo muitas
vezes está cheio de qualidades, tendo algum acesso à educação formal e às benesses do sistema de seguridade social, mas
tais qualificações podem ser socialmente
anuladas assim como o hacker bloqueia
uma rede informatizada.
Observemos as cenas em que os terroristas se mostram pela televisão: homens encapuzados, a não ser na véspera do martírio, sem rostos, que degolam reféns escolhidos a esmo, seja entre os inimigos, seja
entre aqueles que possam vir a ter colaborado com eles. É como se voltássemos à
idéia antiga da responsabilidade coletiva,
mas sem crime definido, a não ser aquele
que faz de cada qual uma inutilidade no
universo. Salvam-se apenas aqueles que a
opinião pública ilumina, o fenômeno possuidor de uma qualidade insuperável. No
entanto para cada indivíduo de sobra resta
apenas a indiferença ou o desespero do ato
limite de destruição de si mesmo, momento em que procura ser conhecido por todos
como membro de um exército invisível.
Somente assim tenta se situar no jogo de
mútuo reconhecimento, irromper como
uma bomba na opinião pública pacificada.
Nota
Agradeço a Luciano Nervo Codato o carinho com
que revê meus textos.
José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de, entre outros, "Certa Herança Marxista" (Cia. das Letras).
Escreve na seção "Brasil 505 d.C.", do Mais!.
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