|
Texto Anterior | Índice
Ponto de fuga
Móvel e imóvel
Jorge Coli
especial para a Folha
Há filmes picturais, filmes que buscaram seus modos de
ser nos valores gráficos, plásticos, cromáticos ou luminosos da pintura. "Um Corpo Que Cai", de Hitchcock, "A Inglesa e o Duque", de Eric Rohmer, "Sinfonia em Paris", de
Vincent Minnelli, "A Idade da Inocência", de Scorsese,
são, entre tantos, alguns exemplos. Outros retomam e citam explicitamente, desde "O Assassinato do Duque de
Guise", de 1908, que reconstituía, numa cena, o quadro,
então célebre, de Delaroche.
A tentação de reconstituir é freqüente em filmes sobre
pintores e presente em dois dos mais sublimes: Toulouse-Lautrec no "Moulin Rouge", de John Huston, e Van Gogh
em "Sede de Viver", de Vincent Minnelli. Kurosawa prestou uma homenagem a Minelli e Van Gogh, consagrando-lhes um episódio de seu "Sonhos". Outros filmes fotografam as próprias pinturas; um, estupendo, é "Andrei Rublev", de Tarkóvski.
Das biografias que incorporam quadros verdadeiros,
passa-se insensivelmente ao documentário sobre os artistas. Chega-se então a um filme supremo, absoluto: "O Mistério de Picasso", de Clouzot (1956), agora editado no Brasil, em DVD, pela Magnus Opus. O artista, com tinta especial, criava obras em que a imagem aparecia dos dois lados; o cineasta o filmou em ação, mas pelo avesso. As formas e cores brotam pouco a pouco, diante dos nossos
olhos. As obras, feitas especialmente para o filme, foram,
por contrato, destruídas. Com uma certa razão, porque
seu sentido essencial é cruzamento. O cinema captou o
processo criador da pintura, e a pintura se oferece no movimento da criação, um dependendo do outro.
Bugalhos e alhos - Vários filmes franceses muito importantes surgem editados no Brasil em DVD. Alguns são raros, como o "Picasso" de Clouzot, "As Damas do Bois de
Boulogne", de Bresson, "A Queda da Casa de Usher", de
Epstein. Esse esforço, porém, não vai até o cuidado com as
legendas, que são desenvoltas, fantasiosas, às vezes malucas, em certos casos claramente feitas a partir de alguma
versão em inglês, e não do original. Assim é com "Le
Mystère Picasso", até no título, que deveria ser "O Mistério
Picasso", e não a transposição de "The Mystery of Picasso", como foi lançado nos EUA. Esse detalhe, no entanto, é
irrelevante, comparado a certos casos sem pé nem cabeça,
como no filme de Jean Cocteau, "O Sangue de um Poeta"
(Continental). A tradução absurda acrescenta ao tom surrealista do filme. No excelente documentário sobre Cocteau, que completa a edição do DVD, há momentos de
doideira homérica. "Le Boeuf sur le Toit" (O Boi no Telhado) é o nome de um cabaré parisiense e de um balé de Darius Milhaud: pois bem, "Le boeuf sur le toit" vira, simplesmente, "o churrasco"! O nome de Gertrude Stein, escritora americana e colecionadora de arte de vanguarda,
foi "traduzido" para... "caneca de estanho"!
Garoa - Livro lindo, com papel encorpado e bom de pegar:
"De São Paulo, Cinco Crônicas de Mário de Andrade 1920-1921" (ed. Sesc/Senac). Escritos em que Mário de Andrade
se encontra na fronteira moderna, empregando palavras
preciosas como "multifário", ou "esto", para falar da Secessão de Dresden. Recriam, em penumbra, os périplos do
autor andarilho pela cidade daqueles tempos. Telê Porto
Ancona Lopes preparou, para eles, ótimo aparato crítico,
minucioso e estimulante.
Tom - Desvarios sobre errâncias, escritos por Mário de
Andrade, no livro "De São Paulo": "Houve mesmo uma
época da minha vida em que, atazanado por vesga neurastenia, o meu espírito ficou assombrado por uma fobia cruciante: as casas lembravam-me uma porção de cabeças de
entes enterrados. Não saía à rua que não me perturbassem
imediatamente o espírito recordações de suplícios tártaros
e chineses. E a existência para mim resumia-se à contemplação de um círculo único e sobremaneira monótono,
dum inferno dantesco. Mas isso foi nos tempos que já lá
vão. A neurastenia passou e os chins enterrados passaram
também. Mas casas continuaram para mim a viver como
seres vivos, cada qual com o seu rosto, ou sorridente de beleza, ou infelicitado pela feiúra".
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
Texto Anterior: + cultura: Surrealismo, modo de usar Índice
|