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A biopolítica humanitária
Slavoj Zizek
Quando Donald Rumsfeld qualificou os combatentes do Taleban feitos prisioneiros de "combatentes ilegítimos" (em
oposição aos prisioneiros de guerra "regulares"), não quis dizer simplesmente
que eles foram proscritos por suas atividades criminosas terroristas: quando
um cidadão americano comete um crime grave, como homicídio, ele não deixa
de ser um "criminoso legítimo", e a distinção entre criminosos e não-criminosos não se sobrepõe à distinção entre cidadãos "legítimos" e aqueles que, na
França, são conhecidos como "sans-papiers" (sem-documentos).
Talvez a categoria de "homo sacer",
reatualizada recentemente pelo filósofo
Giorgio Agamben em seu livro homônimo ("Homo Sacer", ed. da UFMG)
-aqueles que, segundo o direito romano da Antiguidade, podiam ser mortos
com impunidade, e cuja morte era destituída de valor sacrificial, pela mesma razão-, seja a mais apropriada para cobrir essa nova categoria emergente dos
excluídos, que não são apenas terroristas, mas também os receptores de ajuda
humanitária (ruandeses, bósnios, afegãos etc.).
O "homo sacer" de hoje é o objeto privilegiado da biopolítica humanitária. Em
ambos os casos, a população é reduzida a
objeto da biopolítica. Assim, é crucial somar o lado humanitário à lista usual dos
"homo sacer" de hoje (os "sans-papier"
franceses, os favelados brasileiros, os
moradores dos guetos afro-americanos
dos Estados Unidos etc.): talvez as pessoas vistas como receptoras de ajuda humanitária sejam a melhor personificação
do "homo sacer" atual.
Devemos, portanto, supor o paradoxo
de que campos de concentração e campos de refugiados, para a entrega de ajuda humanitária, representam as duas faces, "humana" e "desumana", da mesma
matriz formal "sócio-lógica". A piada
cruel do filme "Ser ou Não Ser" ("To Be
or Not to Be", 1942), de Ernst Lubitsch, se
aplica em ambos os casos: quando indagado sobre campos de concentração alemães na Polônia ocupada, o "Erhardt"
do campo de concentração responde, irritado: "Nós concentramos, e os poloneses acampam". E o mesmo não se aplicaria, também, à falência da Enron (companhia norte-americana do setor energético), em janeiro de 2002, que pode ser
interpretada como uma espécie de comentário irônico sobre o conceito da sociedade de risco?
Milhares de funcionários que perderam seus empregos e suas economias foram expostos a riscos, sem dúvida nenhuma, mas não tiveram nenhuma possibilidade real de escolha. Para eles, o risco apareceu como destino, fatalidade. Já
aqueles que efetivamente dispunham de
informações privilegiadas sobre os riscos
-e, também, da possibilidade de intervir na situação (os diretores da empresa)- minimizaram seus riscos ao vender suas ações antes da falência. Assim,
os riscos e as opções reais foram muito
bem distribuídos. Portanto, fazendo referência ao conceito popular atual segundo o qual a sociedade de hoje pode
ser descrita como a sociedade das escolhas e dos riscos, pode-se dizer que alguns (os diretores da Enron) fazem todas
as escolhas, enquanto outros (os funcionários comuns) correm todos os riscos.
Percebe-se essa lógica do "homo sacer"
claramente no modo como a imprensa
ocidental relata os fatos relativos à Cisjordânia ocupada: enquanto o Exército
israelense, conduzindo o que Israel qualifica de uma operação "de guerra", ataca
as forças policiais palestinas e destrói sistematicamente a infra-estrutura palestina, sua resistência é citada como prova
de que estamos tratando com terroristas.
Esse paradoxo está inscrito na própria
noção de "guerra ao terror" -uma
guerra estranha, na qual o inimigo é criminalizado se ele simplesmente se defende e reage com disparos ao ser alvo de
disparos. Assim, está surgindo uma nova
categoria que não é o inimigo comum
nem o criminoso comum: os terroristas
da Al Qaeda não são soldados inimigos,
são "combatentes ilegítimos"; mas tampouco são simples criminosos. Os EUA
se opuseram de frente à idéia de que os
ataques ao WTC fossem tratados como
atos criminosos apolíticos. Em suma, o
que está emergindo na pele do terrorista
ao qual se declara guerra é precisamente
a figura do inimigo político, excluído do
espaço político propriamente dito.
Dois tipos de conflito
Essa é outra faceta da nova ordem global: já não temos guerras no sentido antigo, do conflito regulamentado entre Estados soberanos, no qual vigoram determinadas regras (o tratamento dado a prisioneiros, a
proibição de determinadas armas etc.).
O que restam são dois tipos de conflito:
ou as lutas entre grupos distintos de "homo sacer", isto é, "conflitos étnico-religiosos", que violam as leis dos direitos
humanos universais, não contam como
guerras propriamente ditas e pedem a
intervenção "humanitária pacifista" de
potências ocidentais, ou ataques diretos
contra os EUA ou outros representantes
da nova ordem global, caso em que não
temos guerras propriamente ditas, apenas situações em que "combatentes ilegítimos" opõem resistência às forças da ordem universal.
Neste segundo caso, nem sequer podemos imaginar uma organização humanitária neutra, como a Cruz Vermelha,
fazendo a mediação entre as partes em
guerra, organizando trocas de prisioneiros etc.: um lado no conflito (a força global dominada pelos EUA) já assume o
papel da Cruz Vermelha -ele não se enxerga como uma das partes em guerra,
mas como um agente mediador da paz e
da ordem global que está esmagando rebeliões específicas e, ao mesmo tempo,
fornecendo ajuda humanitária às "populações locais".
Essa estranha "coincidência dos opostos" chegou ao auge em abril de 2002,
quando o deputado norueguês direitista
Harald Nasvik propôs os nomes de
George W. Bush e Tony Blair como candidatos ao Prêmio Nobel da Paz, citando
seu papel decisivo na "guerra ao terror".
Com isso, o velho lema orwelliano segundo o qual "guerra é paz" finalmente
se torna realidade, de tal modo que a
ação militar contra o Taleban é quase
proposta como maneira de garantir o livre fornecimento de ajuda humanitária.
Assim, já não temos a oposição entre
guerra e ajuda humanitária: as duas estão estreitamente ligadas.
A mesma intervenção pode funcionar
simultaneamente em dois níveis: a derrubada do regime do Taleban é apresentada como parte da estratégia adotada
para ajudar a população afegã oprimida
pelo Taleban -como disse Tony Blair
em setembro de 2001, talvez seja preciso
bombardear o Taleban para garantir o
transporte e a distribuição de alimentos
aos afegãos. Talvez a imagem mais emblemática de como as "populações locais" são tratadas como "homo sacer" é a
de um avião de guerra americano sobrevoando o Afeganistão: nunca se sabe ao
certo se ele está prestes a lançar bombas
ou pacotes de comida.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem". Escreve
mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.
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