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+ crítica
Em "Abril Despedaçado" Walter Salles transpõe a tragédia grega
de Ésquilo para uma guerra entre famílias no sertão nordestino
O deus das pequenas coisas
Anthony Minghella
especial para "The Gardian"
É testemunho de um ano extremamente bom para o cinema internacional o fato de os jurados da Academia de Hollywood não terem considerado para melhor filme estrangeiro de 2001 as conquistas de "O Quarto do Filho", de Nanni Moretti, ou
"Abril Despedaçado", obra de meu amigo, o diretor brasileiro Walter Salles, a
notável sequência de "Central do Brasil".
Realmente há grandes possibilidades
de que "Abril Despedaçado", tão formal
e severo quanto sua paisagem impiedosa, não seja recebido com a mesma adulação do público e da crítica que cercou
"Central do Brasil". Com sua pintura
dickensiana dos despossuídos do Brasil e
um desempenho impressionante de Fernanda Montenegro, "Central do Brasil"
partiu corações no mundo inteiro, conquistando 55 prêmios internacionais, incluindo o Urso de Ouro no Festival de
Berlim em 1998 e um Bafta -o Oscar do
cinema britânico.
O filme também transformou a carreira de seu diretor e lançou Salles em uma
jornada que o levou literalmente a uma
odisséia de um ano promovendo "Central do Brasil", mas, de modo mais significativo, o pôs ao alcance do canto de sereia de Hollywood e das oportunidades
de filmar em inglês com apoio financeiro
substancial. Talvez o mais notável em
"Abril Despedaçado" seja o fato de ser
filmado em português.
O passado de Salles como crítico de cinema, documentarista de cineastas (incluindo Fellini e Kurosawa), produtor e
diretor de comerciais é evidente em quase todos os quadros requintados de
"Abril Despedaçado". O filme cria uma
evocação pungente de uma primitiva
paisagem rural, usando uma gramática
cinematográfica que absorveu completamente a sintaxe do cinema mundial. Há
fortes ecos de Vittorio de Sica e dos neo-realistas italianos, do método de documentário "mosca na parede" (misturando atores profissionais e não-profissionais). Também é intensamente pessoal,
distintivo e sem concessões.
David Hare, um profundo admirador
de "Abril Despedaçado", me escreveu
sobre seu entusiasmo: "Salles usa a câmera como uma espécie de caligrafia, de
uma maneira que você não percebe que
ele está lá. Tem um dom infalível para o
núcleo emocional da história e então, depois de definir seu rumo, parece se ausentar, de modo que você olha para a coisa em si". Hare também observou que,
nesse sentido, Salles filma como um
marxista -demonstrando os meios de
produção, captando o que as pessoas
realmente fazem, da mesma maneira
que John Ford (incidentalmente um dos
heróis de Salles) fez na sequência das minas de carvão em "Como Era Verde o
Meu Vale".
Em "Abril Despedaçado" Salles mostra
como se fabrica açúcar. A conquista especial do filme -vital em qualquer discussão sobre o que faz um filme falar ao
público internacional- é que ele aborda
uma coisa precisa e histórica e, ao transmiti-la com especificidade, a traduz para
o universal e mítico. O filme, situado em
1910 num mundo árido e distante da sociedade civilizada, torna-se profundamente relevante e contemporâneo.
"Abril Despedaçado" se baseia no romance homônimo do albanês Ismail Kadaré (lançado no Brasil pela Cia. das Letras). Salles viu na história do Kanun, o
código que rege as disputas familiares na
Albânia, um paralelo com os conflitos familiares, geralmente conduzidos por
proprietários de terras, que definiram as
fronteiras de certos territórios no agreste
do Nordeste brasileiro, na primeira metade do século 20. Por sugestão de Kadaré, Salles também mergulhou nas tragédias de Ésquilo e descobriu que na Grécia
Antiga os crimes sangrentos não eram
julgados pelo Estado.
Em vez disso, a solução era determinada pelas próprias famílias em guerra, que
estabeleciam seus próprios códigos de
reparação. Isso era semelhante à situação
no Brasil, onde a ausência do Estado
criou um vazio em que se desenvolveram guerras pela terra, e um ciclo incessante de violência devastou a região. Salles descobriu uma série de códigos que
definem essas disputas, compiladas no
livro "Lutas de Família no Brasil", de Sérgio Machado: "A vingança é um dever
absoluto e inquestionável, uma obrigação inescapável sob pena de banimento.
Nesses casos, a desgraça é não apenas
do indivíduo, mas de toda a família". E
ainda: "O dever da vingança recai naturalmente sobre o parente mais próximo
da vítima. Se o parente mais próximo
não realizar esse dever, a ofensa ao morto se voltará contra ele".
Salles conta sua história com certo distanciamento. Uma vida tirada, outra vida tirada em troca. Existe uma recusa deliberada de psicologia ou explicação. Essa técnica por si só distingue o filme da
dramaturgia comercial, em que motivo e
caráter ditam a forma de quase todo o filme. Salles defende a teoria de que o comportamento nesse filme é definido pelo
atavismo, pela aridez punitiva da terra,
por um deslocamento da lógica. Assim
como em "Central do Brasil", o diretor
usa a perspectiva de um menino para
conferir clareza e inocência à sua narrativa. Pacu, o mais jovem dos dois filhos
que restaram à família Breves, presencia
seu irmão ser encarregado pelo pai de
vingar a morte de seu irmão mais velho.
Está entendido que essa morte, por sua
vez, exigirá uma reparação. Assim como
os bois desatrelados da moenda de cana
dos Breves continuam se arrastando em
círculo, essa violência deve continuar.
O tempo necessário para o sangue na
camisa de uma vítima secar e para brotar
na camisa da próxima dá ao filme uma
cronologia cuidadosamente calibrada.
"Agora sua vida está dividida em duas",
adverte a Tonho o patriarca cego do clã
rival Ferreira. "Os 20 anos que você já viveu e o curto tempo que lhe resta. Está
vendo aquele relógio? Cada vez que ele
bater: mais um, mais um, mais um, estará lhe dizendo: menos um, menos um,
menos um." É totalmente cinema de cineasta, cada imagem apresentada com
um cuidado obsessivo; uma série de quadros austeros, a luz modelada num extremo claro-escuro.
Salles acredita, como Antonioni, que a
geografia física tem um impacto sobre a
geografia humana. Ele levou o elenco e a
equipe para a região isolada, a mais de
150 quilômetros do hotel mais próximo,
num calor terrível, preparou os atores
durante várias semanas até que eles conseguissem executar o trabalho dos plantadores de cana, depois contou com a luz
disponível para fotografar as imagens
cruas que definem o filme.
De certa forma, o filme também é refém dessas imagens, assim como seus
atores. Aqui as rédeas são mantidas justas, os atores atrelados à arquitetura do
filme. Há pouco da confusão humanitária de "Central do Brasil", aquelas rupturas inesperadas que -Fernanda Montenegro delineando a boca com batom no
horrível banheiro de um posto de gasolina- interrompem as estratégias formais do diretor.
O interlúdio romântico do filme, um
anseio transferido de irmão para irmão,
quase não transpira. Sua sensualidade
recebe pouco alívio. Este é um filme para
admirar, mais que amar, e termina sem a
catarse emocional que transportou as
platéias de "Central do Brasil".
E, num filme em que as regras são tudo
-"Nesta casa os mortos comandam os
vivos", observa a mãe de Pacu-, o evento que conspira para subverter essas regras tem significado opaco. Se "Abril
Despedaçado" não satisfaz totalmente é
porque sua notação dos efeitos da
"omertà" sistemática é decidida pelo ato
impulsivo de uma criança. O público pode decodificar esse ato como motivo suficiente para deter a matança, mas as
próprias famílias estão além dessa lógica
-do mesmo modo que se poderia dizer
que um espelho continua refletindo,
mesmo depois de quebrado- e assim o
filme se esforça para alcançar sua epifania.
Mas esses são problemas menores
num filme que consegue falar muito sobre a violência, embora quase sem palavras. Há imagens -a intensa penetração
do sol pelas fendas de uma cabana, a
moenda vista de cima, acionada pelos
bois exaustos, uma camisa ensanguentada no varal, agitada pelo vento, Tonho
caminhando para seu destino iluminado
pela lua- que perdurarão muito depois
que as extravagâncias grandiosas e
cheias de efeitos deste ano desaparecerem da mente.
A cena central de vingança, em que Tonho mata seu equivalente na família Ferreira, é filmada com uma verve de parar
o coração, enquanto o caçador e a presa
correm pelos canaviais, o primeiro plano
piscando numa perseguição fraturada e
sem fôlego, rompendo os ritmos até então graves do filme. É o mais próximo da
poesia que o cinema pode chegar.
Anthony Minghella é cineasta britânico, diretor
de, entre outros, "O Paciente Inglês".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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