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PARA NÃO COLOCAR EM RISCO SUA PRÓPRIA SOBREVIVÊNCIA, SOCIEDADE PRECISA
CRIAR UM NOVO MODO DE VER A MORTE
AS FACES DA EXTINÇÃO
David Gray - 31.mai.2003/Reuters
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O médico e defensor da eutanásia Philip Nitschke explica seus métodos em conferência em Sydney
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Hans Ulrich Gumbrecht
especial para a Folha
Há mais ou menos uma década, a morte tem
desafiado as sociedades ocidentais de tantas
formas novas e inesperadas que ainda parecemos aturdidos, sem ação, bem distantes, portanto, de encontrar soluções efetivas. Em junho deste
ano, por exemplo, a mídia alemã noticiou a moção parlamentar de corte, para os cidadãos acima de 80 anos,
de certo seguro-saúde público, até então responsável
pelos gastos com tratamentos médicos caros. A longo
prazo, argumentaram alguns deputados, seria mais importante garantir esse benefício aos jovens membros da
sociedade do que continuar a oferecer um seguro universal precário.
Dadas as taxas de natalidade drasticamente declinantes na Europa (bem abaixo de um filho por casal) e dada
a situação econômica internacional, tais discussões não
surpreendem nem um pouco. No entanto foi unânime
o choque dos escandalizados comentaristas políticos.
Só alguns se abstiveram de usar termos como "desumano" ou "brutal" para condenar o primeiro sintoma de
uma nova forma de cinismo político, segundo eles.
No primeiro semestre deste ano, sir Martin Rees, o astrônomo real britânico, publicou um livro com o inábil
título de "Our Final Hour. A Scientist's Warning - How
Terror, Error, and Environmental Disaster Threaten
Humankind's Future on Earth and Beyond" (Nossa
Hora Final. O Aviso de um Cientista - O Terror, o Erro e
os Desastres Ambientais Ameaçam o Futuro da Humanidade na Terra e no Universo, Basic Books, US$ 25).
O argumento de Rees, porém, é bem mais sóbrio e
alarmante que o título de seu livro. Com base nas novas
tecnologias, sobretudo a engenharia genética e os nanocomputadores, estima em 45% a chance de sobrevivência da espécie humana no século 21. E essa previsão não
leva em conta nenhum uso deliberadamente destrutivo
das tecnologias em questão. Baseia-se na possibilidade
estatística de erros e de reações em cadeia provocadas
por tais erros. Nenhum outro cientista tentou provar
que sir Martin Rees está equivocado, ninguém nem sequer questionou suas afirmações. Largamente divulgado na mídia, o livro não obteve grande repercussão (excetuando artigo publicado no Mais! de 25/5/2003). Sua
prospectiva talvez seja mais do que possamos suportar
tanto no plano individual quanto em termos coletivos.
De qualquer modo, seria um equívoco atribuir os novos desafios apresentados pela morte apenas às interações entre crescimento demográfico, ambiente e desenvolvimento tecnológico. Outro fenômeno ameaçador e
historicamente novo que por ora ainda nos empenhamos em explicar como diferença cultural é a inédita
proliferação de homens-bomba, ou seja, indivíduos
prontos a sacrificar a própria vida no intuito de destruir
muitas outras.
Perda de tempo
Contudo é obviamente problemático associar tal atitude aos ensinamentos do Corão,
segundo sugeriram alguns observadores ocidentais,
uma vez que o Antigo e o Novo Testamentos não hesitam mais do que o livro sagrado do islã em incentivar
atos de auto-imolação. É igualmente ocioso preocupar-se com a possibilidade de o governo americano declarar
"estado de emergência" em resposta a essa provocação,
desconsiderando assim o risco objetivo de um suicida
com uma bomba nuclear explodi-la no centro de uma
grande cidade do Ocidente. Transformar um hipotético
"estado de emergência" em ameaça maior que uma
possível explosão atômica em Londres ou Los Angeles
não passa de mais um desses afetados rituais de autoflagelação, tão caros aos intelectuais.
Ambas as atitudes levam a uma perigosa perda de
tempo numa situação que deveria nos forçar a refletir
analítica e construtivamente sobre estratégias de autodefesa. Afinal, e esse é o ponto a destacar, ninguém dispõe de nenhuma solução prática convincente até o momento. Nada mais danoso que pensar o contrário.
Mas por que temos tanta dificuldade em reagir às novas faces da morte? Não é porque a cultura ocidental tenha reprimido com êxito a presença da morte, como a
intelectualidade costumava alegar alguns anos atrás.
Pelo contrário, ao menos nós intelectuais oferecemos
um amplo leque de opiniões sólidas a respeito da morte,
opiniões tornadas públicas da maneira mais estridente
e cujas contradições internas preferimos ignorar, embora cometam a indelicadeza de lembrar-nos. A grande
maioria de nós defende o direito ao aborto ("pró-escolha!", como alardeiam tantos adesivos nos pára-choques dos carros que circulam pelas cidades universitárias americanas). E, com o mesmo ardor, censuramos a
pena de morte, por nossa incondicional defesa da vida
humana. Muitos de nós querem ver a eutanásia legalizada, para facultar aos doentes incuráveis a possibilidade de dar fim à própria existência. Mas aplaudimos cada avanço científico, cada progresso econômico, em suma, cada passo para estender nossa expectativa média
de vida à utópica fronteira dos cem anos.
Cresce o número de intelectuais defensores dos "direitos animais": segundo esse grupo, cada vez maior, os
bichos, tal qual os humanos, sofrem ao pressentir a proximidade da morte. Reduz-se a uns poucos o número
daqueles que consideram o poder militar um instrumento legítimo em política. Nunca antes de nossa época o número de mortos do lado inimigo foi usado como
argumento político contra a guerra. Entretanto, se a
morte se tornou um de nossos assuntos prediletos, por
que ficamos sempre estranhamente paralisados diante
das últimas ameaças demográficas, tecnológicas e políticas? As formas corriqueiras de ver a morte, arriscaria
dizer como provocação, são próprias de um sujeito pertencente a uma classe média moderadamente hedonista, cujos valores sagrados são o direito absoluto do indivíduo à autodeterminação e o imperativo de evitar o
próprio sofrimento.
A essa justificativa se some uma incompatibilidade
entre semelhante visão da morte e os atuais desafios enfrentados por todos. A idéia de uma criança que não "se
encaixa" no plano de vida individual de alguém se tornou tão intolerável para nós, almas sensíveis, quanto o
exercício imaginativo de nos pôr no lugar de um criminoso no corredor da morte e sentir seu tormento às vésperas da execução. O direito de acabar com a própria vida, seja quando for, mediante uma decisão individual
nos parece tão incontestável quanto o direito de esperar
uma longevidade cada vez mais próxima da eternidade.
Embora, com base na infinita reciclagem dos discursos do Iluminismo, continuemos a acreditar que nossas
mais caras idéias, expectativas e afirmações no tocante à
morte sejam "naturais" e portanto invariavelmente justificadas, é fácil mostrar como estiveram sujeitas a constantes mudanças históricas. Uma reconstrução microscópica dessa história revelaria incontáveis detalhes (não
desprovidos de interesse), porém não deixa de ser uma
solução rica em termos conceituais (e não redutora)
descrever a pré-história de nossa morte como alternância entre duas perspectivas básicas bem distintas.
A visão individualista da morte talvez tenha sido formulada plenamente pela primeira vez com o estoicismo, sobretudo nos textos de Sêneca. Como sua filosofia
não se baseava em nenhuma dimensão transcendental
após a morte do indivíduo, concedia a este o direito de
determinar o momento da própria morte. Os estóicos
recomendavam a seus seguidores concentrar-se em atividades suscetíveis de produzir grande satisfação individual. Excluíam, por conseguinte, o engajamento em
causas sociais e descartavam até mesmo o êxito profissional como objetivo no qual se devesse investir energia. Importa aqui, de um ponto de vista analítico, a configuração de um modo de enxergar a morte como acontecimento estritamente individual, modo esse ligado à
suspensão de qualquer interesse pela esfera social e ao
direito irrestrito à autodeterminação.
A visão mais distante desse conceito estóico da morte
talvez tenha sido a da baixa Idade Média, segundo expressa tão ricamente na arquitetura cósmica da "Divina
Comédia", de Dante. Com menos dúvidas que em qualquer época anterior e talvez também posterior, nos séculos 13, 14 e 15 as pessoas esperavam uma vida eterna
após a morte, vida na qual seriam recompensadas ou
punidas pelas ações praticadas durante sua existência
terrena. Nesse período, o recém-inventado purgatório
seduzia ao extremo como espaço propício a uma infindável diferenciação na forma de conceber o equilíbrio
entre punições e recompensas transcendentes.
Algumas biografias exemplares e principalmente a
história das ordens religiosas na baixa Idade Média
mostram como essa concentração na estrutura paraíso-purgatório-inferno se aliava a uma dedicação muito
maior à esfera da vida social. "Boas obras", capazes de
contribuir para a "santificação do mundo", eram consideradas o investimento mais seguro no intuito de garantir a felicidade eterna. Até mesmo aqueles que, descrentes de sua própria felicidade eterna, resolvessem
entregar-se a uma vida pecaminosa seriam tidos como
descumpridores de suas obrigações sociais.
A era do Iluminismo talvez tenha sido o começo da
transição desse modo predominantemente social de ver
a morte, em sua interseção com a esperança de vida
eterna, para a perspectiva extaticamente individualista
ainda vigente hoje. No âmbito de uma lógica da justiça
cujas dimensões continuavam a ser cosmológicas, Kant
queria conservar o princípio tradicional da equivalência exata entre crime e castigo ("ius talionis"). Segundo
ele, só a pena de morte constituía uma punição adequada para o assassinato: qualquer outra medida deixaria
de atender à exigência básica de simetria.
Com esse argumento, porém, Kant já respondia à opinião do marquês de Beccaria, que em 1756 contestou a
base jurídica da pena capital. Para o italiano, não tendo
o direito de dispor da própria vida, nenhum cidadão
pode aceitar, no contrato social, a possibilidade de sua
própria execução. Em sua habitual severidade, Kant
acusou o argumento de desonesto, rejeitando-o como
mera "deturpação" ("Rechtsverdrehung").
Afora essas polêmicas iluministas, é fascinante observar como valores fundamentais começam a mudar assim que a perspectiva do indivíduo entra na equação
transgressão-castigo. Num estranho e notável romance
utópico, publicado em 1771, com o título de "L'An
2440" (O Ano 2440, ed. La Découverte, 276 págs., 13,57
euros), o francês Louis-Sébastien Mercier tentou conciliar a visão predominantemente social da morte e a
idéia individualista a respeito desta. A religião e a crença
na vida eterna ainda representariam uma possibilidade
legítima, embora não mais um imperativo em sua visão
de um futuro ideal. Além disso, crimes quase não aconteceriam mais. E, se algum ocorresse, toda a sociedade,
de luto, lamentaria e acusaria a si mesma de não ter oferecido uma educação adequada e condições de vida
apropriadas a quem tivesse virado criminoso.
Nesse universo duplamente ambíguo, moldado por
uma religião que teria deixado de ser um horizonte
existencial obrigatório e por uma divisão instável da
responsabilidade ética entre indivíduo e sociedade,
Mercier deu uma solução narrativa peculiar para o problema de como a sociedade ideal do futuro deveria reagir ao crime de homicídio. No romance, é oferecida ao
assassino confesso a possibilidade de decidir o próprio
destino. O sentimento de culpa e a contrição o levam a
escolher a pena de morte. Essa decisão é vista como um
mérito ético suficiente para reintegrar o então ex-criminoso na comunidade de cidadãos. A execução passa a
ser uma celebração pública de suas virtudes cívicas.
Corpos descartados
Cem anos depois, Nietzsche
formulou o conceito de "morte em vida", insistindo numa compreensão da morte como parte da vida humana, em lugar de uma passagem para a vida eterna na
qual filósofos e intelectuais deixaram de acreditar no
fim do século 19. Conforme sugere nossa classificação
binária, a perspectiva exclusivamente imanentista de
Nietzsche precisava ver na morte um elemento da vida
individual. Dois anos antes do começo da Primeira
Guerra, Thomas Mann publicou "Morte em Veneza",
programática ilustração literária do novo conceito
nietzschiano. E, já em 1915, numa obra pouco citada,
"Pensamentos para os Tempos de Guerra e Morte",
Freud interpretou o crescente e obsessivo interesse por
uma antecipação individual da experiência da morte
como reação coletiva à nova forma de morrer na guerra
de trincheira: morria-se sem encontrar ninguém, e os
soldados mortos não passavam de corpos a serem destruídos e descartados na disputa entre máquinas de
guerra cada vez mais poderosas.
Dificilmente seria mera coincidência o fato de Freud
ter antecipado nesse texto alguns dos conceitos e sobretudo o tom das partes mais famosas de "Ser e Tempo",
aquelas em que Heidegger desenvolve uma filosofia
existencial da morte. Nenhuma outra reflexão filosófica
se tornou tão canônica quanto a dele (que, aliás, nunca
voltou ao tema depois da publicação do livro em 1927),
nenhum tratado filosófico está tão próximo daquele,
que desde então é o modo dominante de conceber o fim
da vida. A visão heideggeriana tem quatro componentes principais: (1) a exemplo de Nietzsche, Heidegger
enfatiza uma compreensão da morte como parte da vida, e não como "limiar"; (2) não há experiência "social"
da morte, sublinha, ela só é acessível ao indivíduo; (3)
sendo o fim absoluto da existência individual, a morte
necessariamente provoca angústia em cada um de nós;
(4) tendemos a fugir dessa angústia individual lançando-nos no anonimato (e no entorpecimento) da esfera
social, e, para Heidegger, só há um modo autêntico de
superar a angústia -a antecipação deliberada e confrontadora da morte ("Vorlaufen in den Tod").
O mérito de Heidegger, contudo, não foi o de propor
um entendimento inédito, mas apresentar uma tradução conceitual do novo modo de enxergar a morte que
permeara a cultura ocidental desde a Primeira Guerra.
De forma um tanto surpreendente, o fascínio por uma
visão tão individualizada da morte conquistou até mesmo a esfera do lazer na década seguinte. Hoje consideramos os anos 20 do século passado a época de ouro da
tauromaquia e do boxe. Naquele período, as chamadas
"maratonas de dança" eram tão populares quanto as
corridas de longa distância em pistas cobertas ou ao ar
livre, e havia até um gênero de cinema mudo especializado em associar acidentes de alpinismo ao mais alto
grau de prazer erótico.
Na Europa dos anos 20, começou a prevalecer na história da legislação uma tendência que se converteu num
gigantesco problema prático para a atualidade. Inaugurada com eficácia nos julgamentos de vários genocidas,
essa tendência consiste em tomar o criminoso como vítima ou ao menos como sintoma de uma sociedade que
se julga culpada. Eis a perfeita realização da promessa
humanista presente no romance utópico de Mercier. A
longo prazo, atribuir a condição de réu ao conjunto da
sociedade é um recurso capaz de paralisar o sistema legal. Além disso, cabe indagar se a visão exclusivamente
individual do fim da vida, já institucionalizada ao extremo, não teria impedido os intelectuais europeus de
compreender a industrialização da morte na Alemanha
nazista e na União Soviética stalinista, levando-os a defender com veemência os direitos dos genocidas.
No começo do século 21, ainda nos prendemos à mesma visão individualista da morte, e, para piorar o quadro, a maioria dos intelectuais continua a demonstrar
certo orgulho humanitário desse tradicional individualismo. Mas temos a necessidade urgente de uma perspectiva distinta, outra forma de ver, adequada aos últimos desafios demográficos, tecnológicos e políticos enfrentados pela humanidade. Sentir-nos responsáveis
pelas frustrações individuais dos que cometem assassínios em massa não nos protegerá contra homens-bomba. Negligenciar a necessidade de um novo modo de ver
a morte pode pôr em risco nossa sobrevivência coletiva.
O retrospecto histórico aqui apresentado serviu ao menos para identificar um problema na situação atual. No
passado, visões da morte com um sentido social sempre
foram acompanhadas da crença numa vida transcendente. Para muitas sociedades contemporâneas, pode
revelar-se difícil -se não impossível- reviver tal crença. Por isso, o simples retorno a antigas visões, a modelos e modos de vida anteriores, não será uma reação à
altura do que exigem as novas faces da morte.
Hans Ulrich Gumbrecht é teórico da literatura e professor no departamento de literatura comparada da Universidade Stanford (EUA). É
autor de, entre outros, "Modernização dos Sentidos" (ed. 34).
Tradução de Bluma Waddington Vilar.
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