São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ cultura Substituição de temas bucólicos por bélicos marca a chegada da modernidade à tapeçaria do Oriente Cicatrizes no paraíso
Walnice Nogueira Galvão especial para a Folha
Novas do saque do Museu de
Bagdá, depositário de despojos
milenares das fontes da civilização -de sumérios, caldeus,
babilônios, assírios-, vieram somar-se
numa contabilidade de danos e perdas
ao do Museu de Cabul, arrasado pelo
bombardeio invasor. Tanto mais de notar, num tal cenário, a irrupção de um
testemunho artístico até agora inédito.
Entre esses despojos, ocupa posição de
destaque o tapete, que constituiu por séculos o único mobiliário numa civilização de tendas. Além de aconchego ao
dormir, sentar e palmilhar, revestindo
um piso irregular, serve de cama, de coberta, de sofá, de mesa, de biombo, de
parede, de teto, de reposteiro. Apesar de
comumente chamado de "persa", não é
vinculado às nacionalidades porque as
precede, podendo provir do Irã, do Iraque, do Afeganistão, do Egito, da Índia,
ou mesmo da China.
A arte da tapeçaria, criação do Oriente,
é várias vezes milenar. A obediência à
proibição corânica da figuração, monopólio de Alá, em prevenção à idolatria
não é inflexível nessa arte. Mesmo nos
desenhos geométricos (os "arabescos")
predominam a flora e em menor grau a
fauna, reconhecíveis, embora estilizadas.
Um dos pontos altos na história da arte,
escapa à concepção ocidental que exige
originalidade, antes aplicando-se a copiar os riscos tradicionais e a repeti-los
da maneira mais fiel possível.
O mais comum é aquele que traz para
dentro da tenda ou da casa o jardim. As
dimensões da peça, determinadas pelo
tear, impõem o retângulo, cujos lados
paralelos indicam os muros que contêm
a profusão vegetal em meio à qual reponta em silhueta o bestiário. E, compondo
uma mandala, deflagrada pela dinâmica
centrípeta da própria forma do retângulo, surge um medalhão central com o
croqui de uma fonte, a qual pode se repetir nos quatro cantos do tapete; outras
vezes, em lugar de uma, há três fontes em
linha reta, no meio, entre guirlandas.
Por contraste e a bem de confortar o espírito, propõe-se à vista a negação da natureza circundante do deserto, trasladando para o recesso da morada um simulacro de oásis urdido pela mão humana.
As crônicas guardam a lembrança do
palácio em Ctesiphon, sede da dinastia
dos Sassânidas (então na Pérsia, hoje no
Iraque e bem perto de Bagdá), cujo salão
nobre ostentava o descomunal tapete
Primavera, o qual, se não fosse documentado historicamente, passaria por
mais uma das "ficciones" de Jorge Luis
Borges. A obra reproduzia um jardim
formal com todas as minúcias de seu
quadriculado, arroios coleando entre sebes, caramanchões, repuxos, canteiros
de flores, árvores frutíferas, pássaros e
animais povoando as alamedas, passeios
de saibro, cercas vivas e touceiras, renques de palmeiras.
Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática). Texto Anterior: As faces da extinção Próximo Texto: + autores: O jogo de espelhos de Sartre e Jean Genet Índice |
|