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"Ação e Reação", de Jean Starobinski, traça o itinerário dos dois conceitos
e defende que eles são indissociáveis do surgimento da idéia de modernidade
A vida tensa das palavras
João Cezar de Castro Rocha
especial para a Folha
As palavras têm sua própria história. E a história das palavras diz
muito sobre a mudança das sociedades tanto no plano individual quanto no coletivo. Em "Ação e
Reação", Jean Starobinski acompanha a
fortuna desse par de conceitos, destacando o segundo termo, cuja tumultuada
história fornece um inesperado panorama da aventura da modernidade. À primeira vista, o estudo de Starobinski se
enquadra no modelo da história dos
conceitos, tão caro à tradição alemã. Por
isso, seu método guarda afinidades com
obras de referência como a de Leo Spitzer, "Idéias Clássicas e Cristãs sobre a
Harmonia do Mundo - Prolegômenos
para uma Interpretação da Palavra
"Stimmung'", e a de Arthur Lovejoy, "A
Grande Cadeia do Ser - Estudo da História de uma Idéia". Ou com livro anterior
do próprio Starobinski, "As Máscaras da
Civilização" (Companhia das Letras), no
qual desvenda os sentidos dessa palavra.
Embora tal caracterização seja correta,
ela deixa escapar o radicalismo desse novo experimento de Starobinski, que parece combinar as lições da linguística
sincrônica de Saussure com a pesquisa
diacrônica, característica do método da
história das idéias.
Ora, o estudo da história das palavras,
de sua origem e formação, tradicionalmente é tarefa da etimologia. Muitas vezes vista como mera erudição ou usada
como pretexto para herméticas especulações, a etimologia antecipou a abordagem antropológica, como o ensaio de
Starobinski esclarece. Afinal, a maior
contribuição da antropologia reside na
desnaturalização da idéia de cultura,
pois a observação de costumes e códigos
diferentes revela o caráter arbitrário dos
hábitos sociais. As opções de determinada cultura não serão necessariamente
endossadas pelas demais. Daí a vocação
de a antropologia realizar-se no reconhecimento pleno da alteridade, revelando a
diversidade de culturas possíveis.
A etimologia antecipou o olhar antropológico, explicitando as diferentes
acepções assumidas historicamente pelas palavras, num efeito de estranhamento em relação ao próprio idioma. Tais diferenças obrigam o analista a uma bem-vinda cautela, pois o significado atribuído hoje a uma palavra pode contrariar o
de épocas anteriores. Em casos extremos, palavras correntes talvez nem sempre tenham existido. É o caso de "reação", fruto tardio da baixa Idade Média.
Paixões
Assim, o casal "ação e reação" somente formou-se no limiar dos
séculos 12 e 13, no seio das disputas escolásticas. No mundo clássico, a paixão designava o ato fundamentalmente passivo
de sofrer uma ação sem "reagir".
Nesse casal de conceitos, destacava-se
o agente da ação, cujo impulso se encontrava tanto no "primeiro motor" aristotélico, que move o mundo sem por este
ser movido, quanto na origem divina,
que, naturalmente imune a efeitos externos, movimenta o universo. Ações que
desconhecem reações, provocando somente paixões.
O pêndulo começou a inclinar-se no
século 13, iluminando a capacidade de
oferecer resistência. Ou seja, agir em resposta à ação sofrida: re-agir. Capacidade
que levaria ao questionamento da idéia
de um móvel necessariamente exterior
aos atos do sujeito. Na verdade, o crescimento progressivo da importância do
conceito de reação parece indissociável
da gestação da idéia do sujeito moderno.
Entretanto, durante aproximadamente
três séculos, o novo termo viu-se confinado aos "fenômenos da natureza, sem
nenhuma aplicação ao mundo humano". Reação, nessa época, era propriedade da mecânica, parte da física que estuda o comportamento de sistemas submetidos à ação de uma ou mais forças.
Diderot, porém, desempenhou um papel
decisivo na transferência do termo da física newtoniana para o que denominava
"física experimental".
Rápida tradução: passagem do reino
abstrato de fórmulas matemáticas para o
universo concreto de fenômenos da natureza. Dos fenômenos naturais ao corpo humano bastou um pulo, pois as reações físico-químicas favoreciam o comércio entre as áreas, marcando a hegemonia da química em detrimento da
mecânica. Daí, na passagem do século 19
ao 20, a palavra fecundou os domínios
recentes da psiquiatria e da psicanálise.
Um salto mais audacioso conduziu à
vida social, concebida na vizinhança da
Revolução Francesa como organismo
coletivo, composto por uma miríade de
ações e reações. Em breve, o conceito
empolgou poetas e escritores, interessados no vitalismo associado à idéia de reações contínuas e criadoras. O termo ganhou ainda um matiz particular, oposto
ao progresso, originando o sentido pejorativo de "reação", de "reacionário", no
particular idioma da política.
Por isso, as aventuras do casal de conceitos permitem "falar de um hiperativismo contemporâneo". O avesso da
reação, mais do que apenas a ação sobre
o elemento que agiu em primeiro lugar, é
a imagem do sujeito moderno. Sujeito
definido por agir e, sobretudo, reagir, sabendo como fazer coisas com palavras.
Destaque-se, por fim, a radicalidade do
experimento de Starobinski. É como se
um princípio básico de Saussure fosse
aplicado à história das idéias. Aprendemos que os fonemas não têm valor em si,
tornando-se significativos pelo contraste
com outros fonemas. Ora, o conceito de
reação adquire pleno vigor quando
oposto ao de ação. Ao mesmo tempo, o
método diacrônico da história das idéias
contamina e enriquece a abordagem sincrônica da linguística saussuriana. Promove-se, assim, uma instância de "ação e
reação" entre as duas abordagens.
Tal possibilidade já se encontrava latente em "As Máscaras da Civilização",
pois não se compreende o conceito francês de "civilização" sem seu par de inspiração alemã, "cultura". Entretanto em
"Ação e Reação" o método encontra pleno desenvolvimento. Talvez por ser a
forma mais oportuna de reagir à química
do próprio tema.
João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de "Literatura e Cordialidade" (Eduerj) e organizador de "As Máscaras da Mímesis" (Record) e "Interseções" (Imago).
Ação e Reação
420 págs., R$ 40,00
de Jean Starobinski. Trad. de Simone Perelson. Ed.
Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP
20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/2585-2000).
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