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Ponto de fuga
Reprodução
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Cena do filme "Senso 45", de Tinto Brass |
As asas do desejo
"A tremenda angústia de testemunhar tanto sexo sem
desejo": Carlos Reichenbach escreveu assim a respeito
de sua experiência como fotógrafo de um filme "explícito". Mostrar a sexualidade no cinema não é simples. O
gênero pornográfico, no mais das vezes, expõe por expor, com resultados laboriosos e medíocres. O cinema
"de arte", por sua vez, como em "Intimidade", de Patrice Chéreau, chegou a incorporar cenas ousadas, tratando-as com um tom enobrecido, intelectual, que justifica
essa presença por razões elevadas de cultura e inteligência. O desejo não é, então, o objeto; é antes o meio para
situações densas de dramas existenciais, submergido
em águas baças, às vezes difíceis de atravessar.
Diante dessas situações, "Senso 45", filme de Tinto
Brass, que sai agora em DVD no Brasil (Imagem Filmes), sobressai como obra fora do comum. O universo
de Brass é o do erotismo, e seus filmes são facilmente
classificados na rubrica da pornografia. O DVD é descuidado, a começar pela edição em "fullscreen". O título
original, que remete à novela de Camillo Boito e à versão que Visconti dela fez para o cinema, vira "Luxúria".
É um tratamento "baixo", dado a todos os seus filmes,
sempre escondidos nos recônditos mais envergonhados das locadoras.
Ocorre que Tinto Brass joga, de fato, com esse registro
"baixo" e conta com o público que consome pornografia. Um olhar atento e desprovido de preconceitos percebe, no entanto, que Brass vai muito além.
Nível - Muitos diretores italianos são gênios indiscutíveis e incensados: basta pensar na santíssima trindade
Visconti-Fellini-Antonioni, à qual seria possível acrescentar vários outros nomes. Mas existe, na Itália, uma
categoria à parte: a de cineastas que enfrentam gêneros
francamente populares, fazendo filmes para um público sem pretensões à sofisticação e à cultura. Apesar disso, esses diretores sempre demonstram uma convicção
verdadeiramente cinematográfica e produziram obras
que poderiam ser postas ao lado de "8 1/2" ou de "Blow
Up". Foram, porém, longamente ignorados ou desprezados pela crítica, justo porque atuavam em gêneros indignos, como o terror ou o erotismo.
Lucio Fulci, Mario Bava, Dario Argento só hoje vão
sendo, aos poucos, redescobertos. Mestres do terror, do
"giallo" e do "poliziottesco", também enveredaram, algumas vezes, pelo filão erótico, do qual, sem conteste,
Tinto Brass é o papa. "Senso 45", à medida que se alça a
um tema elevado do cinema e da literatura, enriquecendo-o de fato com uma nova visão, aviva os aspectos em
aparência contraditórios dessas relações. É mais fácil,
para um certo conformismo condescendente, dizer
que, com "Senso 45", Brass fez uma versão pornô de
Visconti, do que levá-lo a sério.
Gozo - Ao contrário do sexo sem desejo, que angustia
Carlos Reichenbach, a câmera de Tinto Brass é miraculosa no seu modo de incorporar o desejo por meio do
sexo. Num filme como "Trasgredire" ("Transgredir",
mas que os distribuidores batizaram, no Brasil, de "A
Pervertida"), ele instaura uma leveza divertida, delicada, que permite explorar os corpos sem pudor, numa
espécie de inocência "desejante". Em "Senso 45", ao
contrário, se todas as ações possuem um motor erótico,
são marcadas por estratégias de domínio, sórdidas e
culposas. Nisso, sua Lívia é mais próxima daquela concebida por Boito do que o personagem de ópera que
Visconti criou.
Imagens - Brass possui uma rítmica nas cenas eróticas,
um sentido da montagem e do andamento, uma precisão nos cortes que parecem brotar de um ato amoroso
entre o diretor e seu filme. Possui também uma ciência
da iluminação necessária e justa, muito diversa desse
tom âmbar sistemático em certos filmes que se pretendem "de arte". Em "Senso", seja de Boito ou de Visconti, há recorrentes apelos aos espelhos, que refletem o envelhecimento da condessa. Espelho, mote favorito de
Brass, que, em "Senso 45", é explorado com fascínio
mágico, com poesia de voyeur.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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