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MORTO NO ANO PASSADO, O PORTUGUÊS JOÃO CÉSAR MONTEIRO REAFIRMOU EM SEUS FILMES, EMBORA DE MANEIRA AUTOCRÍTICA, O CARÁTER "DIVINO" DO DIRETOR
A comédia do autor
Lúcia Nagib
especial para a Folha
Jean-Claude Bernardet inicia seu livro "O Autor no
Cinema" (Edusp) comparando o autor cinematográfico a Deus, "a causa primeira". Todo o trabalho
de Bernardet vai no sentido de questionar a mitificação da figura do autor, cuja origem remonta à famosa
"política dos autores", criada por Truffaut e seus colegas dos "Cahiers du Cinéma" nos anos 1950, às vésperas
do surgimento da "nouvelle vague". Bernardet aponta o
fundo religioso dessa política que, originária do personalismo católico de Mounier, passa pelo realismo de
Bazin até chegar aos "jovens turcos" (Truffaut, Godard,
Rivette, Rohmer, Chabrol), os quais, como se sabe,
transformaram seus diretores prediletos em deuses, erigindo para eles um panteão.
A partir do final dos anos 60, a teoria do cinema, com
base em Foucault e Barthes, se aplicou em desconstruir
o autor, numa atitude política destinada a enfatizar a
importância das forças sociais em detrimento do criador individual, visto como um mero filtro da história
ou, na terminologia de Foucault, uma simples "função". Tratava-se de negar a crença romântica na arte como revelação da personalidade e, em última análise, negar Deus.
A obra do cineasta português João César Monteiro localiza-se no extremo oposto da revolução proposta por
Barthes e Foucault, reafirmando não apenas a figura do
diretor como autor único, mas também o seu caráter
"divino". A obra integral de Monteiro, morto em 3 de
fevereiro de 2003, aos 64 anos, já se encontra disponível
em DVD, possibilitando ao espectador constatar a força
do traço autoral que percorre seus filmes do primeiro
ao último, apoiando-se em motivos recorrentes que,
para o grupo dos "Cahiers", constituíam a "assinatura"
do autor cinematográfico.
Ponto alto de sua obra é a extraordinária trilogia,
composta por "Recordações da Casa Amarela" (1989),
"A Comédia de Deus" (1995) e "As Bodas de Deus"
(1998), na qual Monteiro, além de diretor, autor dos argumentos e fonte quase exclusiva do estilo, encarna o
protagonista João de Deus, combinando seu próprio
prenome com o do criador supremo.
Se o personagem divinizado e a personalidade dominadora do cineasta lembram o autor mítico louvado pelos "jovens turcos", não se trata de mera coincidência.
Monteiro formou seu gosto cinematográfico na esteira
cinefílica da "nouvelle vague". Festejado desde o início
pelos "Cahiers", ligou-se de amizade com críticos e diretores franceses, tornando-se admirador de Serge Daney, editor dos "Cahiers" entre 1973-81 e fundador da
revista "Trafic", a cuja memória dedicou o filme "A Comédia de Deus". Daney é também o inspirador de seu
longa-metragem de ecos surrealistas, "Le Bassin de
John Wayne" (1997), baseado num sonho cinefílico do
amigo francês em que "John Wayne mexe maravilhosamente a bacia no Pólo Norte".
Outro tradicional crítico dos "Cahiers", Jean Douchet,
integra a família de Monteiro, tendo participado do
elenco de "As Bodas de Deus" e "A Comédia de Deus".
A construção
do personagem de João de Deus se apóia em dois princípios opostos:
as técnicas de filmagem realistas e a utilização da fábula
Embora soe conservador, o retorno ao
autor uno, no caso de Monteiro, significa
ausência de limites e total liberdade de
expressão de um imaginário obsessivo, e
seu grande trunfo é que isso se realiza
sem nenhum resquício de romantismo
messiânico. Essencial a seu cinema é a
constatação a cada passo do ridículo da
pretensão divina, cuja representação cinematográfica passa necessariamente
pela ironia, o humor e a autoderrisão.
A construção do personagem de João
de Deus, lastreada na melhor tradição
portuguesa do obsceno anticlerical, se
apóia em dois princípios opostos: de um
lado, as técnicas de filmagem estritamente realistas, quase documentais; de
outro, a utilização da fábula, articulada
num sistema de citações derivado da cinefilia. Trata-se de um método dialético,
crítico e auto-reflexivo, que num só movimento se impõe e se anula, ao mesmo
tempo solucionando e superando a
questão do autor no cinema.
Realismo e comédia
Embora no
início Monteiro tenha filmado lendas e
contos fantásticos portugueses, na trilogia trata-se, antes de tudo, de "documentar" seu imaginário erótico da forma
mais realista possível. O papel do diretor
de fotografia fica reduzido ao mínimo, já
que, para Monteiro, "a câmera não deve
participar do drama, mas apenas registrá-lo". O resultado é uma abundância
de planos-seqüência e planos gerais, frequentemente com câmera fixa, e um uso
restrito do campo-contracampo. A luz
natural é explorada à beira da escuridão,
e a gravação do som direto inclui a execução da música durante a rodagem das
cenas. Acrescentem-se a isso a participação de figurantes leigos, as locações internas e externas reais e a ênfase na ambientação contemporânea e resulta o filme realista por excelência, tal como o definia Bazin.
No entanto, como aqui o objeto/personagem é o próprio sujeito/autor, não se
trata de atingir o máximo de objetividade, como queria Bazin, mas de evitar que
artifícios venham a interferir na expressão plena do estilo do diretor.
Com relação ao gênero, Monteiro opta
decididamente pela comédia. "Recordações da Casa Amarela" é anunciado, nos
créditos, como "uma comédia lusitana".
A designação se repete no título "A Comédia de Deus", filme, como o anterior,
ambientado em Lisboa, que parodia e rebaixa para o cotidiano prosaico português a obra-prima de Dante. O humor
reforça a intenção realista, pois o desajeitamento hilário com que Monteiro interpreta seu personagem relativiza suas
pretensões divinas, reduzindo-as a delírios quixotescos.
Em "A Comédia de Deus", essa tensão
dialética se estabelece desde a introdução
do protagonista. Duas funcionárias da
sorveteria Paraíso do Gelado (outra alusão paródica a Dante) aguardam à porta
que o gerente, sr. João de Deus, chegue
para abri-la. Elas o vêem se aproximar,
com "pontualidade britânica", num passo vagaroso. Uma delas comenta: "O
movimento lento é essencialmente
maestoso". E a outra responde: "Para
mim, é um atraso de vida". João conserva o ar solene, mas suas lições de asseio e
destreza, na sorveteria, são traídas por
seu próprio desajeitamento, em momentos cômicos como quando perde no
chão um gomo de mexerica que joga à
boca ou esborracha a casquinha de sorvete ao tentar encaixar a massa.
Em vários momentos, o desajeitamento evolui para o pastelão, a começar pelo
fetiche incomum do protagonista por
pentelhos femininos. João mantém uma
coleção deles, cuidadosamente embalados em envelopinhos colados às páginas
de um álbum chamado de "Livro dos
Pensamentos", acrescidos de nomes, datas e comentários. Enriquece a coleção
convidando ninfetas para jantar, oferecendo-lhes antes um banho de leite. A filha mais nova do açougueiro, Joaninha,
de 15 anos incompletos, é uma das convidadas. Ao massagear com uma esponja o
corpo da menina e procurar o seu sexo,
João acaba caindo de cabeça na banheira. Ao final, com seu habitual mau jeito,
enche galões com o leite da banheira, filtrando os pêlos púbicos e reutilizando o
leite no sorvete sabor Paraíso, devidamente servido à convidada numa taça
em forma de vagina.
Mas o pastelão tem também seu contraponto sublime. Os rituais da lavagem
e do banho levam à descoberta da beleza
simples das mãos femininas, do corpo
adolescente nu, de um rosto de menina
sem maquiagem. Os close-ups, nesses
momentos, constituem recortes epifânicos que neutralizam os sentidos da perversão e do cômico. Em "As Bodas de
Deus", um longo close-up do rosto de
Joaninha, captando o momento em que
seu olho produz uma lágrima, lembra os
famosos close-ups de Dreyer, em seu "A
Paixão de Joana d'Arc" ("La Passion de
Jeanne d'Arc", 1928), tão elogiados por
Bazin, que mostram as lágrimas nascendo nos olhos de Falconetti e rolando em
seu rosto sem maquiagem.
Citações como as de Dreyer, típicas da
cinefilia de Monteiro, são combinadas às
técnicas realistas para conferir veracidade à fábula. Na construção de João de
Deus, pesam em igual medida os elementos autobiográficos e a homenagem
a um dos personagens mais famosos da
história do cinema: o conde Drácula (ou
Nosferatu), representado pelo ator Max
Schreck em "Nosferatu" ("Nosferatu eine Symphonie des Grauens"), dirigido
em 1922 por F.W. Murnau.
No final de "Recordações da Casa
Amarela", após escapar do hospício,
João de Deus reaparece, em meio a uma
nuvem de gelo-seco, de dentro de um alçapão na rua, tal como o vampiro que
emerge do navio-fantasma no filme de
Murnau. Em "A Comédia de Deus", o
próprio nome do ator é dado nos créditos como Max Monteiro, combinando-se ao de Max Schreck.
Enquanto ator, Monteiro faz de tudo
para assemelhar-se a Nosferatu. Naturalmente magro, cabeçudo, narigudo e com
orelhas de abano, como Schreck no filme
antigo, ele às vezes anda com passinho
miúdo e mãos encolhidas, sendo, como
o vampiro, filmado à contraluz, especialmente quando se prepara para dar o bote
em uma de suas ninfetas. É pela similitude com o personagem vampiresco que o
nada atraente João de Deus consegue
convencer como uma espécie de Don
Juan sobrenatural.
Outra versão dos fatos
Mas também a verdade da fábula é questionada
por uma segunda versão dos fatos, diferente daquela mostrada do ponto de vista ritualístico e íntimo de João de Deus.
Por exemplo, embora Rosarinho pareça
inteiramente satisfeita após o sexo com o
sr. João, ele é afinal acusado pela dona da
sorveteria de ter "esgarçado o cu" de sua
melhor empregada. Joaninha também,
após cumprir com visível deleite todas as
etapas do ritual do banho e do sorvete,
provavelmente conta história bem diversa a seu pai açougueiro, que retalha o
rosto do herói e o manda nas últimas para o hospital.
Na versão da polícia, apresentada em
"As Bodas de Deus", João é um psicopata
criminal, identificável já pelo formato do
crânio, enviado ao hospício por ter exibido os genitais a uma menina de sete anos
num jardim público. Como João não
oferece defesa a tais acusações, argumentando apenas que sua "desgraça foi
ter nascido em Portugal", cabe ao espectador julgar.
A dupla perspectiva serve, também,
como crítica social. Em "A Comédia de
Deus", as fraudes da fábula nada fazem
senão espelhar uma sociedade que vive
de expedientes ilegais. A ingênua Rosarinho mora num bairro miserável chamado Cambodja, onde crianças vendem fotos de crimes para a imprensa e também
de Rosarinho nua. O açougueiro moralista comercia carne sem fiscalização, falsificando o carimbo da saúde com a ajuda da mulher e das filhas.
A trilogia de João de Deus nos apresenta, assim, um autor relativo, cuja capacidade autocrítica nada mais é do que o retrato ao mesmo tempo subjetivo e crítico
da sociedade que o cerca.
Lúcia Nagib é professora de cinema na Universidade Estadual de Campinas e autora de "O Cinema
da Retomada" (ed. 34) e "Nascido das Cinzas"
(Edusp). Este texto é o resumo de um capítulo sobre João César Monteiro escrito para o livro "24
Frames - Spain and Portugal" (Londres, Wallflower
Press), a ser publicado em 2005.
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